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Conversa, Quinta feira, 20 de agosto 2015

Ontem, fui convidado para falar na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados sobre o problema da Diversidade Religiosa no Brasil e a Laicidade do Estado.

Ontem, o ambiente de Brasília era de manifestação dos trabalhadores contra as medidas de ajuste fiscal que penalizam os mais pobres. A frente da Câmara estava totalmente tomada por milhares de manifestantes e o tumulto era enorme. Difícil até de entrar. O  auditório número 09 do Anexo da Câmara estava lotado. Além de alguns deputados amigos (Luiz Couto, Jean Wyllys e outros), a maioria me pareceu ser constituída da chamada "bancada evangélica" e para exigir liberdade para a pregação cristã e não tanto atenção a direitos humanos e diversidade.

Em meio à fala de vários pastores, eis a minha palavra: 

Brasília, tarde de 19 de agosto de 2015

Para mim é uma grande honra poder falar aqui nessa Comissão e devo dizer que essa já deve ser a terceira vez que falo nesse auditório. Sempre a serviço dos direitos humanos e da missão que todos nós temos de fortalecer o diálogo e o entendimento entre as diversas tradições espirituais e religiosas. Nesse sentido, quem me conhece sabe que venho aqui como religioso e com o desejo de, como religioso, cumprir uma missão de cidadania e colaborar para um país no qual a justiça exista para todos os cidadãos e as religiões colaborem para que o mundo seja mais amoroso. Desde jovem, é buscando essa meta que trabalho no diálogo com várias Igrejas e outras religiões. Sou feliz em ser cristão de tradição católica, mas Deus me livre de que todo o Brasil fosse católico. Estou convencido de que a diversidade de confissões dentro do Cristianismo, como no âmbito inter-religioso é uma graça divina que nos enriquece a todos.

Tenho consciência de que essa forma de pensar não é da maioria dos cristãos nas diversas Igrejas e nem da maioria dos católicos ou dos seus pastores.

Antes de mim, falou o Dr. Uziel, presidente dos juristas evangélicos e afirmou que o Cristianismo é a religião mais perseguida no mundo e que há muitos Estados que perseguem os cristãos. Penso que a maioria das perseguições religiosas não são cometidas por Estados e sim por outras religiões que, quando se instalam no poder, se servem dos Estados. Por isso, é fundamental o Estado laico e que ajude as religiões a se entenderem. O professor Uziel dizia que o Cristianismo tem sido a religião mais perseguida, mas, de fato, o Cristianismo foi a religião que, em toda a história, mais provocou violência e guerras no mundo.

Há mais de cem anos, em 1910, pastores evangélicos que tinham missão na Ásia se reuniram em Edimburgo na Escócia para falar sobre suas missões. E ali eles se puseram de acordo que “a divisão das Igrejas cristãs é contra a vontade de Cristo, é um contra-testemunho do evangelho e por isso é um obstáculo à missão.” Essa convicção se tornou a base da fundação do Conselho Mundial de Igrejas que a partir de 1948 é uma fraternidade de Igrejas irmãs (evangélicas e ortodoxas) e hoje reúne 349 Igrejas no mundo. A Igreja Católica demorou mais de 50 anos para compreender aquilo que os pastores tinham dito em Edimburgo em 1910. Mas, finalmente, em 1964 retomou essa mesma palavra em um documento do Concílio Vaticano II sobre a relação com as outras Igrejas: o Decreto sobre Ecumenismo[1].

Infelizmente, mesmo depois de tanto tempo, tanto católicos como evangélicos e pentecostais continuam tratando sua fé como se fosse tema de competição comercial entre a Coca Cola e a Pepsi Cola. E muitas Igrejas ainda tentam garantir para si privilégios no lugar de se colocarem a serviço da construção de um mundo mais justo e de paz. Durante séculos, a Igreja Católica perseguiu hereges, condenou quaisquer dissidências como se fossem feitas ao próprio Deus. Infelizmente, hoje, grupos que no passado foram perseguidos em nome da fé e da Bíblia, fazem a mesma coisa com outros grupos religiosos, como as religiões de matriz afrodescendente. Que coisa terrível e triste que da Igreja Católica medieval esses grupos que se afirmam cristãos herdaram o que ela tinha de pior e mais anti-evangélico: a sua desumanidade. Herdaram da velha forma de ser Igreja as cruzadas e inquisições repressivas e odiosas.

O Brasil foi conquistado pelo império português da épica colonial, legitimado por um Catolicismo guerreiro que queria se impor e pregava um Deus intolerante e cruel com quem não estava de acordo com o papa e os bispos católicos. Agora, o nome de Deus continua usado para legitimar atos de racismo, de preconceito cultural e de exclusivismo religioso. Pobre de Deus.

Milhões de negros foram trazidos da África para a América. Foram proibidos de falar os seus idiomas e adorar a Deus de acordo com as suas culturas originais. Suas religiões foram demonizadas e condenadas pela Igreja Católica que os obrigava a serem batizados e a se dizerem cristãos. Depois de séculos dessa iniquidade, praticada em nome de Deus, ainda há cristãos que não reconhecem o direito das comunidades negras adorarem a Deus em suas religiões próprias.  

Se eu tivesse amigos que apresentassem de mim uma imagem como alguns padres e pastores apresentam de Deus, um Deus cruel, violento, arrogante, intolerante e homofóbico, eu os consideraria meus inimigos e não meus amigos. De todo modo, sem dúvida, não é o Deus que Jesus chamava de Abba, Paizinho e dizia que ele faz nascer o sol sobre os bons e os maus e faz chover sobre justos e injustos.

Pastores que fazem muita questão de acusar as religiões negras de idolátricas não percebem que ao usar o nome de Deus para interesses corporativistas do seu grupo religioso, cometem uma idolatria ainda mais perniciosa. Um pastor da Igreja do século VI dizia: não adoram deuses falsos. Adoram o Deus verdadeiro de uma maneira falsa porque o convertem em um ídolo cruel e desumano. 

Aliás, a atitude preconceituosa e exclusivista desses grupos que se dizem cristãos me lembra uma palavra do Dr. Martinho Lutero, iniciador da Reforma Protestante. Ele afirmava: “Deus prefere o insulto e a blasfêmia de quem é justo aos aleluias e ao louvor de quem comete injustiças”. 

Pelo fato da realidade brasileira ser assim, temos um fato estranho. Normalmente, deveriam ser as Igrejas cristãs a pedir ao Estado brasileiro que respeite e zele pela liberdade religiosa de todos e pelo direito de exercerem a sua fé em um país laico e em uma sociedade pluralista. Infelizmente, criamos uma situação na qual é o Estado que deve exigir das Igrejas que sejam mais coerentes com os princípios de sua fé - Deus salva a toda humanidade e de graça – e não porque sejam dessa ou daquela Igreja. É o Estado que deve proteger os direitos dos mais fracos e impedir que terreiros de Candomblé continuem a ser invadidos ou ameaçados e uma criança como Keilane no Rio nunca mais precise ter medo de sair de casa, porque jamais ninguém tentará apedrejá-la por causa de sua fé. Nenhuma mãe de Santo terá mais um infarto, como a Mãe Gilda, teve, em Salvador, ao  ver o seu templo desrespeitado por irmãos que se diziam cristãos.

O Brasil inteiro espera dessa Comissão de Defesa dos Direitos Humanos que assuma essa bandeira da defesa da laicidade do Brasil que não significa ateísmo e nem a redução da fé aos espaços privados de cada indivíduo, mas sim o respeito e a convivência plural em uma sociedade cuja meta seja a paz e a justiça e não a imposição de alguma tradição religiosa. Em 1943, em uma prisão nazista, já condenado à morte pelo próprio Hitler, o pastor evangélico Dietrich Bonhoeffer propôs que os cristãos adotassem como modo de viver a sua fé a convivência com a laicidade e o respeito à diversidade cultural e religiosa. Ele dizia: “Devemos viver em Deus e com Deus, mas como se Deus não existisse”.

Estou convencido de que era uma tradução atual para a palavra de Jesus à mulher samaritana que lhe perguntava qual era a religião correta dos judeus ou dos samaritanos. Onde deveria adorar a Deus, no monte Garizim ou no templo de Jerusalém. Jesus respondeu: “Nem nesse monte, nem em Jerusalém. Vocês adoram quem vocês não conhecem.  Deus é espírito e seus adoradores devem adorá-lo em espírito e em verdade” (Jo 4, 23).

Um rapaz disse a Dom Pedro Casaldáliga:

-  Eu sou ateu.

Pedro retrucou: De que Deus?


[1] - Cf. DECRETO UNITATIS REDINTEGRATIO, CONCILIO VATICANO II, novembro 1964

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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