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Meditação bíblica, domingo, 10 de agosto 2014

O evangelho lido hoje nas comunidades nos traz uma cena muito conhecida da vida de Jesus. Transcrevo o que escrevi sobre ela no meu livro: "Conversa com Mateus": 

4 – O encontro sobre o lago (Mt 14, 22- 36)

Quem lê, hoje, esse relato, estranha que Jesus tenha obrigado os discípulos a subir na barca para o outro lado do Mar da Galiléia. Já vi até quem comentasse achando que Jesus fez de propósito para eles sofrerem a tempestade no lago. É imaginar Jesus um homem sádico que quer mostrar seus poderes à custa do sofrimento e medo dos discípulos. Pelo contexto, Mateus deixa a entender que Herodes achava que Jesus era João Batista ressuscitado e isso significava que a qualquer momento ele decidiria matar Jesus também. A história da repartição dos pães que a comunidade de Mateus acabou de contar, tornou a estadia de Jesus ali naquele território ainda mais insegura e perigosa. Contando o mesmo fato, o Evangelho de João conta que o povo queria tomar Jesus e fazê-lo rei e ele teve de fugir para a montanha (Cf. Jo 6, 15). Fica claro que havia um problema político: um contexto de subversão compreendida pelos poderosos da terra. Jesus percebe o perigo e “força” os discípulos a fugirem para o outro lado do mar que era jurisdição do tetrarca Filipe que já vimos tratar-se de um homem mais calmo e pacífico. E ele mesmo, sozinho, sobe à montanha para orar. 

Certamente, a história da tempestade tem um fundo histórico. Até hoje, o lago da Galileia é famoso por suas fortes e terríveis tempestades. Em uma delas, os discípulos de Jesus correram um grande risco e nela, o evangelho de Mateus viu um sinal forte da intervenção salvadora de Deus através de Jesus. Talvez, a base dessa narrativa tenha sido um relato de aparição do Senhor Ressuscitado. De todo modo, a história de Jesus vindo de madrugada, andando sobre as águas para salvar os discípulos na barca é uma parábola bonita sobre como Jesus se manifesta mesmo em meio às tempestades das nossas noites.

Na maioria das vezes, fomos educados a pensar em Deus no silêncio, na paz e associar a presença de Deus à claridade e à beleza de uma natureza tranquila. Comumente, não pensamos Deus presente nas tempestades da vida e na escuridão de nossas noites do espírito. Essa palavra do evangelho revela que Jesus traz a presença divina para o coração de nossas angústias, de nossos medos e nossas noites escuras. 

É claro que a barca é símbolo da comunidade cristã (Cf. 8, 24) e o fato da comunidade de Mateus contar a história falando três vezes em “medo”, “angústia” e “pavor”, mostra a realidade da comunidade. A cena de Pedro se sentindo afundar no caminho entre a barca e a figura de Jesus que o chamava também é símbolo de que a insegurança e o afundamento no mar do mundo pode atingir até aquele que representa a comunidade. Mesmo os apóstolos e ministros afundam e sentem medo no meio do caminho para o Cristo, quando a tempestade se torna mais ameaçadora.

O ato de fé de Pedro e de cada crente que lê a ação de Jesus se realiza a partir da ressurreição. Vê em Jesus o “consagrado de Deus” do qual o Salmo 2, 7 dizia: “Tu és meu Filho”.

Um aspecto que parece problemático na história é o título que Pedro dá  a Jesus de “Kyrios”, “Senhor”. Na época, era um título subversivo porque só o imperador de Roma se intitulava de Kyrios. Ao dar a Jesus ressuscitado este título, os cristãos primitivos mostravam que não aceitavam o absolutismo de nenhum poder humano. Só Jesus é o Kyrios, senhor de nossa vida.  Hoje, aquele título que tinha uma conotação subversiva e transformadora tem uma dimensão problemática porque, na história, foi interpretado na linha do patriarcalismo. Deus foi visto como um patriarca macho (senhor JWHW) e Jesus é senhor. Culturalmente, este kyriakismo tem sido na expressão da nossa fé cristã um elemento que acaba colaborando com a marginalização da mulher. Mary Daly, teóloga norte-americana, disse muito claro: “Se Deus é homem, o homem é Deus”[1]. A teologia latino-americana e do terceiro mundo devem assumir esta sensibilidade  [2].


[1] Mary DALY. Beyond God the Father.  Boston: Beacon Press, 1973,  p.19. Ver ainda:

[2] - LUIZA E.TOMITA, Crista na dança de Asherah, Íris e Sofia, Novas Metáforas divinas para um debate feminista do Pluralismo Religioso, in AETT, Pelos Muitos Caminhos de Deus II, Teologia Pluralista da Libertação, Loyola, 2004. Em espanhol, Quito, 2004, p. 109. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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