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Meditação bíblica, para o domingo 09 de março 2014

O primeiro domingo da Quaresma é, cada ano, centrado na leitura que conta as tentações de Jesus no deserto. Nesse ano, as comunidades leem esse episódio simbólico como foi narrado por Mateus (4, 1- 12). 

Aqui reproduzo o comentário que fiz sobre isso no livro: Conversa com Mateus: 

O povo de Deus foi tentado no deserto. Durante toda a sua vida, Jesus também teve de enfrentar tentações. Só não é tentado quem não precisa fazer opções. Jesus sempre teve de escolher. Cada escolha tem vantagens e tem limites. Cada escolha pode até ser vista como sendo agradável a Deus. Para Jesus, a pior tentação não foi a de escolher entre o bem e o mal, mas entre como fazer o bem. Ou ao menos assim, os evangelhos contam as tentações de Jesus. Foram tentações quanto ao modo dele cumprir a sua missão.  

No batismo, Jesus descobriu que o seu modo de ser anunciador do Reino era não como um Messias poderoso, ou como Rei de Israel (Filho de Davi) e sim sendo o servo sofredor de Deus (Is 42). Então, a tentação foi a de não ser fiel ao que o Pai revelou a Jesus no batismo. Após o batismo, o Espírito leva Jesus ao deserto para ter de optar verdadeiramente por aquele caminho que o Pai lhe propunha. É claro que para Jesus, a tentação não foi apenas um momento. Foi um clima que percorreu toda a sua vida e missão. Quem está por trás do diálogo de Jesus com Satanás é o próprio Pai. Por isso, Jesus sempre responde ao diabo com a própria Palavra de Deus. Jesus aceita a insegurança no futuro, tanto para si mesmo como quanto ao que é mais difícil para ele: a sua causa. É a sua fé como entrega total nas mãos do Pai que é sua vitória na tentação.

Mateus conta essas tentações de Jesus no deserto como uma espécie de “haggadá” (reflexão em forma de um conto) sobre as tentações de Israel no deserto, vistas à luz das tentações que Jesus teve de enfrentar em toda a sua vida. O evangelho mostra que as tentações de Jesus são as mesmas que, no tempo do deserto, o povo de Israel viveu. Como o povo viveu quarenta anos no deserto, Jesus passa ali quarenta dias. Como o povo teve fome, Jesus também enfrenta essa provação. Como o povo teve de confiar no Senhor, Jesus também é chamado a vencer as mesmas tentações de Israel no deserto, da Igreja na época em que vocês escreveram o evangelho e podem ser, de outra forma, as mesmas da Igreja de hoje: a tentação do pão, do maná ou da garantia do sustento material. A comunidade de Mateus viveu em tempos de penúria e de escassez de alimentos. Buscar alimentos é responsabilidade humana e o pecado não seria comer ou quebrar o jejum. Seria mais obter o pão por uma sugestão do diabo. Hoje, há muitas formas de ceder, por exemplo, ao poder da propaganda, da publicidade enganosa. Hoje, o tentador toma outros rostos e outros jeitos de se apresentar. Jesus é tentado a usar o poder de Deus a serviço de si mesmo. Isso, ele não pode e não deve fazer. Nenhuma Igreja ou missionário/a deveria fazer isso: usar a Deus e seus benefícios em função de si mesmo/a.

A tentação do templo é a de usar a religião e a fé para o seu benefício próprio. Mesmo com a melhor das intenções. Uma forma dessa tentação é fazer de Deus tapa-buraco de nossas necessidades e aprofundar uma religião baseada em milagres. Quantas religiões parecem religiões de resultado: não vivem e atuam para buscar a Deus, mas para ter de Deus resultados concretos na vida.

A terceira tentação é a mais profunda e perigosa de todas: é a tentação do poder. “Tudo isso te darei, se prostrado me adorares”. Um dos mais importantes autores da Teologia da Libertação escreveu: “O conteúdo concreto da tentação é o uso do poder que Jesus aceitaria ter para cumprir a sua missão” (J. Sobriño[1]).

Ao dizer que o mundo é do diabo, o evangelho mostra que as sociedades têm o seu poder a partir do desamor e do espírito de domínio. Não é a terra (o planeta) que pertence ao diabo. Nem em si a humanidade. Ao contrário, como diz o salmo: “De Deus Amor é a terra e tudo o que ela contém, o mundo inteiro e todos os que o habitam” (Sl 24, 2). Em seu comentário a este evangelho, Warren Carter diz: “O diabo se mostra como dono dos impérios do mundo. “Tudo isso te darei, se prostrado, me adorares!”. Isso quer dizer que o diabo controla os impérios como Roma no mundo antigo (e os impérios de hoje). Vários imperadores tentaram impor aos judeus o culto imperial. Calígula quis colocar no templo de Jerusalém uma estátua sua para ser adorada. Até hoje, os seguidores de Jesus são tentados a adorar os impérios do mundo”[2].

Jesus confronta o diabo com a própria palavra bíblica e cita Moisés: “porque está escrito: Adora o Senhor, teu Deus e serve só a ele” (4, 4. 7). Ele cita o Deuteronômio (Dt 6, 13 substituindo teme por adora e acrescenta um só a Ele. Então, diz o texto: o diabo o deixou e os anjos vieram e o serviram. Aí o verbo diakoneó indica o servir comida. Era a função dos diáconos na Igreja primitiva: cuidar da mesa. Jesus que rejeitou a comida proposta pelo diabo, recebe a comida vinda de Deus que dá valor à comida e quer que a gente coma.

A tradição simbólica do judaísmo veria neste relato da tentação a descrição de como Jesus enfrentou a luta interior com os seus próprios demônios e nos ajuda a vencer a permanente luta contra o que dentro de nós é demoníaco (fator de divisão interior). É importante que a meditação das tentações de Jesus e de como ele as venceu possa ajudar as Igrejas cristãs de hoje a retomarem o caminho do deserto e refazerem as opções fundamentais da fé.


[1] - JON SOBRIÑO, Cristologia a partir da América Latina, Petrópolis, Ed. Vozes, 1983, p. 117.

[2] - WARREN CARTER, O Evangelho de São Mateus, Paulus, 2002, pp. 152- 153. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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