Para unir oração e compromisso de vida
Prefácio de Dom Tomás Balduíno
Para nos fortalecer no compromisso de transformar esse mundo e iluminar a vida com uma oração consistente e profunda, podemos sempre contar com o livro bíblico dos Salmos. No entanto, para muita gente de hoje, a linguagem na qual os salmos vêm vestidos pode ser um obstáculo que não ajuda a pessoa a alimentar-se da riqueza dessa profunda escola de oração. Para sanar essa lacuna e resolver o problema, é necessário coragem para romper costumes estabelecidos. É preciso mesmo um certo despojamento para renunciar a expressões que são belas e nos acompanham desde muito tempo, mas não conseguem mais expressar a realidade atual na qual devemos viver a aliança de intimidade com Deus e em Deus.
Esse esforço de encontrar uma
linguagem nova e despojada de tantos pressupostos culturais é uma verdadeira
ascese espiritual e teológica. Só pode ser feita por alguém que ama
profundamente os salmos, convive com eles desde muitos anos e, ao mesmo tempo,
se sente profundamente solidário às pessoas que buscam o mistério e não se
sentem à vontade com os costumes religiosos de sempre.
É esse o percurso seguido por
nosso irmão Marcelo Barros, monge, teólogo e amante da Bíblia. Desde que em
1977, como bispo de Goiás, convidei a comunidade beneditina do Mosteiro da
Anunciação em Curitiba para se transferir para a diocese de Goiás, Marcelo,
ainda jovem, veio com outros dois monges, viver e trabalhar conosco. Nesse
tempo, ele já aprofundava os salmos. Já
os propunha para as celebrações da caminhada. Junto com outros liturgistas,
poetas e artistas, como Reginaldo Veloso e a irmã Agostinha Vieira de Mello, já
preparava o que, uma década depois, no Brasil, se denominou “Ofício Divino das
Comunidades”, um modo excelente de abrir a todo o povo de Deus o tesouro da
Liturgia das Horas, mas de forma verdadeiramente inserida na cultura brasileira
e na realidade das comunidades. Do mesmo modo, junto com irmãs e irmãs de todo
o Brasil, Marcelo ajudou a firmar a Rede Celebra, um grupo de permanente
formação de liturgia nas comunidades que tanto bem tem feito em todas as
regiões do Brasil.
Agora, com esse novo livro, tão bem intitulado
“Diálogos com o Amor”, Marcelo dá um passo a mais em sua relação com os salmos.
Contando como sempre com a parceria preciosa de Reginaldo Veloso e de Agostinha
Vieira de Mello, ele nos oferece uma nova versão dos salmos, o mais possível libertada
da linguagem patriarcal e de uma espiritualidade exclusivista. Esse livro
oferece 65 salmos da Bíblia, traduzidos em um estilo mais acessível às gerações
atuais e mais aberto ao hoje do mundo. Sem dúvida, é sempre possível contestar
algumas escolhas feitas. No modo de traduzi-los, haverá quem lamente algumas
perdas da linguagem da tradição que nos era tão querida. Para dizer a verdade,
eu mesmo também sinto isso. Entretanto, para compartilhar o pão com outros
irmãos e irmãs, não podemos mantê-lo inteiro e intocado. Temos de parti-lo. Assim
como o alimento de nossas mesas precisa ser partido para ser partilhado, também
com o pão da Palavra e com o tesouro dos salmos se dá o mesmo. Temos de abrir
mão da nossa familiaridade cultural com eles para reparti-los com um grupo
maior de irmãos e irmãs.
Para os autores desse livro,
toda observação crítica será benvinda e, sem dúvida, a essa primeira edição,
outras se seguirão. Dessa vez, recebemos o presente de 65 salmos, os mais
comumente usados e apreciados pelas nossas comunidades. Em edições futuras,
certamente outros salmos serão acrescentados. Mas, esses já nos dão um sabor
novo da palavra de Deus em linguagem atual e ecumênica que devemos aproveitar.
Em um de seus mais belos escritos, o sermão pronunciado em sua ordenação presbiteral, Gregório de Nissa, pastor da Igreja oriental, no século IV, propunha: “Imagine-se uma pessoa que caminha no deserto, sob o sol escaldante do meio-dia. Você está sedento/a e não tem água. De repente, à margem do caminho, eis uma fonte de águas límpidas e transparentes ali ao seu alcance. Sem dúvida, não lhe passará pela cabeça ficar raciocinando sobre a natureza da água, nem perder tempo com estudos sobre como aquela água chegou até ali. Você vai simplesmente aproximar-se da fonte, jogar o seu corpo por terra e beber daquela água até saciar-se”.
Do mesmo modo, você que está com sede, faça isso com esse livro e Deus o/a abençoe e o/a acompanhe nesse caminho.
Seu irmão mais velho, + Tomás Balduíno
corrigido e confirmado de um
leito de hospital em Goiânia, na quinta feira santa de 2014, menos de um mês
antes da sua partida definitiva.