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Reflexão sobre o Natal feita para o clero do Recife

Reflexão que fiz na confraternização do clero do Recife - 20 dezembro 2011

“Das alturas, orvalhem os céus e as nuvens que chovam justiça.

 Que a terra se abra ao amor e germine o Deus Salvador”.

 (Cântico do Advento, inspirado em Isaías 45).

Queridos irmãos,

Uma vez, alguém comparou a festa de Natal com esses presentes curiosos que um amigo dá a outro e que cada vez que se abre a caixa, surge outra menor dentro da primeira. A pessoa vai abrindo caixas e caixas sem encontrar ainda o presente. Assim também, temos de rasgar vários invólucros superficiais e superar várias noções falsas ou menos profundas do Natal, até reencontrar o seu conteúdo verdadeiro e profundo. Não penso que temos de procurar esse sentido mais profundo do Natal apenas nas celebrações religiosas ou na teologia cristã. Se nessa festa, as pessoas celebram a confraternização humana e se tornam mais verdadeiramente amigas e humanas, ótimo. Desde o seu surgimento, a festa do Natal assumiu a celebração do solstício do inverno no hemisfério norte, aproveitou a alegria do povo e a confraternização das pessoas nessa ocasião e uniu a isso a memória cristã da encarnação ou seja a celebração de que Deus se torna humano na pessoa de Jesus. No decorrer da história, como um rio que vai recebendo água de vários riachos, a celebração do Natal foi ganhando tradições e costumes como a árvore de Natal, a história do Papai Noel, criado a partir de lendas sobre São Nicolau, cuja memória se festeja também em dezembro. É lamentável que nos últimos tempos, essas tradições tomaram formas mais comerciais e consumistas e hoje o Papai Noel se tornou garoto propaganda de shoppings e de empresas comerciais. Entretanto, o Natal é sempre ocasião de confraternização humana e de unidade das famílias e dos amigos que se reencontram. Talvez aí esteja uma mensagem humana e trans-religiosa de Natal que nós, cristãos, devamos ouvir como palavra de Deus e valorizar mais. Sem dúvida, esse elemento humano e afetuoso da festa nos faz redescobrir o próprio coração da celebração cristã do Natal: proclamar a presença divina na humanidade de cada um de nós e de todos.

A própria liturgia do dia 25 de dezembro tem uma oração coleta vinda de São Leão Magno (século V) que fala que devemos celebrar o “novo nascimento de Jesus” em nossas vidas. Em um de seus sermões de Natal, diz que o Verbo se fez humano para que todo ser humano possa se tornar divino. Penso que é isso que devemos aprofundar nesse Natal para nossas vidas pessoais e para nossas paróquias e comunidades.

O Natal não pode ser mera comemoração de aniversário do nascimento de Jesus e sim uma atualização dessa presença humana de Deus no mundo. Para aprofundar isso, quero lembrar uma história judaica contada pelo filósofo Martin Buber: “Um dia, em Roma, a comunidade judaica recebeu uma notícia: O Messias chegou. Está na porta de Roma, como um mendigo leproso e está esperando. Todos que esperavam um Messias poderoso e triunfante que viria para liderar Israel na sua luta ficaram decepcionados. Por que ele vem assim tão frágil e incapaz de ser salvador? Depois da decepção manifestada na comunidade, um jovem pergunta ao rabino: “O que ele está esperando?”. O rabino respondeu: “Ele espera por você!”[1].

Essa visão diferente da vinda do Messias foi uma imensa reviravolta na teologia espiritual judaica. Em primeiro lugar, o Messias vem, não como um senhor poderoso, mas como mendigo doente. Essa teologia tem raízes nas profecias do Servo Sofredor e em algumas correntes espirituais de Israel, mas põe de cabeça para baixo a concepção do Deus da aliança que protege com poder o seu povo. Se o próprio messias vem como um pobre doente, como libertará Israel? Do outro lado, essa visão indica que o Messias, frágil e impotente, vem e está em uma atitude de espera. Não somos nós que esperamos por ele. É ele que espera por nós e faz de cada um de nós o messias esperado que pode trazer salvação para todos.  Quando chega, não atrai sobre si as atenções. Sua função é revelar que o esperado de Deus é cada pessoa que o procura e cada pessoa que o espera. Ele reparte conosco sua messianidade que agora se torna comunitária e não mais função de um só herói. Ele faz de todos nós consagrados, ungidos, Cristos de Deus. Sem dúvida, essa é a mensagem mais profunda e transformadora que podemos contemplar no Natal. Todos nós somos filhos de Deus e enviados ao mundo como instrumentos do amor divino e da salvação.

O pastor Dietrich Bonhoeffer, condenado à morte pelos nazistas e martirizado em abril de 1945, poucos dias antes de se encerrar a guerra, tinha escrito para a festa do Natal: “Esta celebração garante a todos os seres humanos, homens e mulheres: Vocês todos foram assumidos. Deus não os desprezou. No corpo humano de Jesus, ele carrega a carne e o sangue de vocês todos. Quando olharem a manjedoura, acreditem: no corpo daquele menino que nós cremos ser o filho de Deus feito carne, é a carne de vocês, é toda a miséria humana, a angústia de todos os sofredores, as tentações de todas as pessoas frágeis, mesmo é o pecado de vocês que ali está sendo assumido, perdoado e santificado. Sempre fico impressionado quando encontro ainda cristãos que parecem pensar: “Eu sou mesmo assim e não consigo mais me converter. Cheguei ao ponto que podia e pronto!”. Se você celebra esta festa, a própria boa nova do Natal lhe diz: “A tua natureza, todo o teu ser foram assumidos por  Jesus que os carrega sobre si e assim ele se torna teu salvador”. Só se crês nisso, podes dizer verdadeiramente que o filho de Deus assumiu a natureza humana”[2].

Os pais da Igreja oriental diziam que o objetivo da fé cristã é nos divinizar. Talvez, compreendíamos essa palavra como uma espécie de processo de auto-perfeição e até de superação das condições humanas. Mas, conforme a Bíblia, pretender “ser como Deus” foi o pecado de Adão. Não é essa a proposta de Jesus: “Sede perfeitos como vosso pai do céu é perfeito” (Mt 5, 48). Lucas traduziu por “sede misericordiosos, como o vosso pai do céu é misericordioso” (Lc 6, 36). Então, para que tenhamos em nós o coração de Deus, Deus se revela humano e nos assume tanto e de tal forma que a humanidade ou seja a humanização se torna a medida do nosso processo de divinização.

No século XVI, preso no porão do convento carmelita de Toledo, São João da Cruz escreve o Cântico Espiritual, comentário maravilhoso do Cântico dos Cânticos. E ali tem uma passagem que nos pode ajudar a compreender esse sentido do Natal que estamos aqui aprofundando:

“Por que chega a tanto a ternura e verdade do amor

 com que o Pai presenteia e engrandece

a esta humilde e amorosa alma,

ó coisa maravilhosa e digna de admiração,

Ele se sujeita a ela verdadeiramente para engrandecê-la,

como se, verdadeiramente, fosse ele, Deus, o seu servo

e ela, a alma humana fosse o seu senhor.

E está tão solícito em presenteá-la,

como se ele fosse seu escravo e ela fosse seu Deus.

Tão profunda é a humildade e a doçura de Deus”

(Juan de la Cruz, Cântico Espiritual, c. 27, n. 1).

Celebrar isso em 2011 significa proclamar que isso aconteceu no tempo histórico da vida de Jesus de Nazaré, quando ele assumiu a nossa humanidade. Na noite de Natal, os textos litúrgicos nos recordam o nascimento de Jesus em Belém. Entretanto, as leituras e orações da missa do dia do Natal falam do Verbo que se fez carne e da humanidade de Jesus muito mais ampla do que apenas do seu nascimento. A primitiva festa do Natal era a Epifania. Até hoje, algumas Igrejas orientais ainda não têm o Natal no dia 25 de dezembro e festejam no 06 de janeiro a festa da Teofania. Tanto as Igrejas orientais que conosco festejam o Natal como as poucas que ainda não o celebram, costumam ler na Epifania o evangelho do batismo de Jesus no Jordão, onde ele assume a nossa condição de pecadores e ouve a palavra do Pai: “Tu és meu filho muito amado, em quem eu ponho todo o meu bem-querer” (Lc 3, 22 e Mc, 1, 11). Segundo alguns manuscritos antigos teria sido a palavra do salmo 2: “Tu és meu Filho, hoje eu te gerei”.

Então, é na hora em que Jesus se coloca no meio do povo oprimido e pecador e na hora que como Servo ou cordeiro, (o termo hebraico é o mesmo), ele assume nosso pecado que ele recebe de Deus essa revelação de que é filho muito amado.  É importante nos colocar nesse caminho do seguimento de Jesus e de sermos discípulos dele hoje. É esse o desafio: aprofundar como isso se dá hoje em nossas vidas e na vida das pessoas e da humanidade como conjunto.

Sem dúvida, um primeiro apelo da celebração do Natal a nós é o de revermos como trabalhamos em nós mesmos essa proposta de sermos cada vez mais humanos. Humanos como Jesus. Esse processo de assumirmos nossa dimensão humana tem dois aspectos:

Primeiramente, o nosso modo pessoal de ser, de viver e de conviver. A encarnação de Jesus aparece em primeiro lugar no fato de que ele se deixava comover, enternecer, vibrar de alegria e até chorar diante das situações da vida. Várias vezes o evangelho diz: suas entranhas se moveram de amor uterino ou de compaixão. Penso que na nossa arquidiocese do Recife, temos sempre de nos recordar do testemunho e do exemplo de Dom Hélder que quanto mais foi envelhecendo, mais se mostrava humano e capaz de se enternecer com a vida e as pessoas.

Do outro lado, não dá para dizer em segundo lugar, como se fosse menos importante, mas é outra dimensão da mesma realidade da encarnação: participar do processo social e histórico da humanidade. Principalmente, comprometer-se com aquilo que Jesus se comprometeu. Na primeira vez que ele falou publicamente na sinagoga de Nazaré, a cidade na qual tinha sempre vivido e crescido, o que ele disse foi: “O Espírito do Senhor veio sobre mim e me ungiu (por isso ele é o ungido ou Cristo) e me enviou para curar os doentes, libertar os cativos e proclamar um ano de libertação da parte de Deus” (Lc 4, 16 ss). A partir de então, a pastoral cristã tem sempre esses dois aspectos intrinsecamente unidos e inseparáveis: uma dimensão carismática e espiritual: se deixar encher do Espírito Santo. Ser pessoas arrebatadas mesmo pelo Espírito, cheios do Espírito, como Jesus. No quarto evangelho, o Batista testemunha sobre Jesus dizendo: “Eu vi o Espírito descer sobre ele e nele permanecer” (Jo 1, 34). Mas, em Jesus, esse movimento carismático ou impulso do Espírito o leva a se consagrar aos sofredores e à proclamar a libertação de todas as pessoas oprimidas. É preciso unir a dimensão carismática e mais contemplativa da fé ao serviço libertador aos lavradores, aos trabalhadores urbanos, aos doentes, aos prisioneiros, enfim, a todos os homens e mulheres que sofrem. Novamente, aí temos o exemplo de Dom Hélder, capaz de celebrar uma missa e chorar profundamente na oração eucarística e ao mesmo tempo viver intensamente essa dimensão libertadora da pastoral. Em um de de seus pequenos poemas, ele dizia:

“Quando na Grande Vigília,

o céu se nubla e todos lastimam

que o Natal não conte

com uma noite sem chuva,

estremeço de emoção

pensando no Profeta:

como sem céu nublado

irão as nuvens

chover o Justo?

É quando conseguimos integrar esses dois aspectos da fé que vivemos o seguimento amoroso de Jesus e estamos testemunhando a sua encarnação, ou seja, o seu Natal. Os setores de pastoral social são não apenas como serviços suplementares ou um pouco excepcionais da pastoral ordinária, mas, ao contrário, a forma de ser discípulos do reino que foi a de Jesus (basta ler todos os evangelhos para constatar isso) e que ele nos propõe: “O que fizerdes a um desses pequeninos em meu nome, é a mim que o fazeis” (Mt 25, 31 ss).

Neste ano de 2012, celebraremos os 50 anos da inauguração do Concílio Vaticano II que o papa João XXIII chamava de “novo Pentecostes para a Igreja” e que, de fato foi uma primavera de renovação e de vida. O Vaticano II não é somente uma linha pastoral e teológica. Revela também uma espiritualidade de encarnação da Igreja. Por isso, ele é um caminho de Natal e nós todos somos convidados a retomá-lo. Por isso, é bom que a festa do Natal venha nos recordar e nos propor de recomeçar. Desde jovem, sempre me impressionou muito um responso ou versículo que a liturgia latina usa muito no dia 24 de dezembro e que aparece até na 1as vésperas do Natal. É baseado no livro do Êxodo quando o povo hebreu no deserto tinha fome e não tinha o que comer e Moisés lhe prometeu que Deus providenciaria. O versículo diz assim: “Hoje vocês sabereis que o Senhor virá e amanhã vereis a sua glória”. No tempo do deserto, de fato, na manhã seguinte, o acampamento dos israelitas amanheceu cheio de um orvalho doce e nutritivo. Era o maná do deserto. Hoje a celebração do Natal, a própria liturgia e a confraternização do Natal, o nosso modo de viver a festa, tanto no plano espiritual, como na dimensão pastoral, pode ser para nós esse novo maná, necessário até chegarmos à terra definitiva, quando o próprio Jesus dentro de nós e em nossas vidas, será não mais apenas o maná do caminho, mas o alimento da vida eterna. Por enquanto, nessa caminhada árdua e aparentemente ainda longa para o mundo novo possível, desejo a todos um feliz e santo Natal.  


[1] - M.BUBER, Sette discorsi sull´ebraismo, Ed. Carucci, Assisi-Roma, 1976, p. 16.

[2] - D. BONHOEFFER, Memoria e Fedelta, p. 67, citado por MARCELLO FARINA, Grammatica della Speranza, Ed. Il Margine, Trento, 2009, p. 107.  

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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