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A fé e a salvação como relação humana

A fé e a salvação como relação humana

                 Nesse momento, em Roma, se desenvolve o Sínodo dos bispos com a proposta de diálogo com as culturas amazônicas. Enquanto isso, grupos católicos, religiosos/as e até cardeais julgam o papa e o sínodo como hereges por valorizarem culturas, que esses católicos tradicionalistas consideram pagãs e idolátricas. Provavelmente não gostarão de ler o evangelho desse 28º domingo do ano C (Lucas 17, 11- 19). Nele, Lucas conta que, na viagem de Jesus a Jerusalém, ele passava pela Samaria e ali se encontrou com dez homens que eram leprosos. Jesus mandou-os ao templo para que os sacerdotes lhes dessem o atestado de cura e eles foram. No caminho perceberam estar curados e somente um voltou para agradecer e esse era samaritano, isso é, estrangeiro e herético. Como hoje as comunidades amazônicas, com suas culturas e suas sabedorias próximas buscam uma relação com quem valorize suas culturas e defenda suas vidas. 

A comunidade de Lucas já tinha contado a parábola de um samaritano solidário que Jesus propunha como modelo de amor ao próximo (10, 25 ss). Também tinham se referido que algumas aldeias de Samaria não tinham aceitado acolher Jesus em sua viagem para Jerusalém (Lc 9, 53). Agora, o mesmo evangelho conta que Jesus passa pela fronteira da Samaria e entra em uma aldeia que parece ser de samaritanos. Nos Atos dos Apóstolos, Lucas conta que várias aldeias de Samaria foram evangelizadas (At 8, 25). Isso significa uma abertura da comunidade cristã do evangelho de Lucas aos samaritanos. Há uma fonte antiga no Cristianismo de adesão de samaritanos ao evangelho. Basta ler as fontes do quarto evangelho (por exemplo, Jo 4 que conta o encontro de Jesus com uma mulher da Samaria na beira do poço de Sicar). A comunidade de Lucas deve ter relido as mesmas fontes que, mais tarde, inspirariam o quarto evangelho. Lucas retrabalhou esse material e assim escreveu sobre uma longa e profunda missão de Jesus com os samaritanos. Talvez esse relato dos dez leprosos foi colocado nesse contexto da viagem de Jesus a Jerusalém para mostrar que a abertura da comunidade aos samaritanos de ontem e de hoje é sempre necessária. Essa abertura vem do próprio Jesus e inclusive faz parte da caminhada pascal de Jesus e nossa para Jerusalém.

A história dos dez leprosos revela também a difícil relação das comunidades cristãs da época do evangelho (anos 80) com o sistema judaico dos chefes da sinagoga. De fato, um modo não ecumênico e anti-judaico de ler esse evangelho é interpretar de forma excludente e absoluta a palavra que Jesus teria dito quando o samaritano curado voltou para lhe agradecer: O evangelho diz que Jesus perguntou: Só esse voltou para dar glória a Deus? Isso é estranho porque os outros nove que foram ao templo, também foram lá para “dar glória a Deus”. Ou será que não? Foram não para agradecer a Deus e sim para cumprir a lei e ser declarados limpos e capazes de frequentar o culto? Se é assim, a oposição não é entre o Judaísmo do templo e a fé em Deus através de Jesus. A oposição é entre a religião da lei e a fé baseada na relação afetuosa e direta. Jesus opõe o culto formal de qualquer religião que exista para que as pessoas se sintam justificadas e um gesto espiritual de dar glória a Deus. Não se trata apenas de agradecer a cura. É testemunhar que Deus esteve presente neste caso. Mostrar que a cura obtida é sinal da presença visível e salvadora de Deus e que ao receber a cura, a pessoa ou comunidade quer mais do que isso: quer viver a salvação, isso é, uma relação de amor e intimidade com Deus e em Deus que testemunha essa nova situação de plenitude de vida, saúde e paz que é a salvação.

Atualmente, há muitas Igrejas e mesmo dentro de nossas Igrejas, há grupos que se situam como “religiões de resultado imediato”. Na Igreja Católica, há paróquias que fazem cultos de cura. Nos santuários de peregrinação, pagamentos de promessas e votos. Na Igreja Universal do Reino de Deus, sessões de descarrego. As pessoas querem ser curadas. O evangelho lembra que o mais importante é que a cura nos conduza à relação de dar glória a Deus e de testemunho da ação de Jesus.

Podemos dizer que o projeto divino de cura e salvação é para toda a humanidade, independentemente de religião e de fé. Os dez leprosos curados significam isso. A libertação é um projeto gratuito e deve ser para todos. Muitos aceitam viver isso e pronto. Sentem-se satisfeitos. Isso basta. Mas, há quem tocado por essa descoberta de ser salvo se põe a caminho de uma relação de salvação que é pessoal e de fé (relação de adesão) que no caso do evangelho é ao Cristo e em outras culturas e religiões tem outras formas de acordo com o que o Espírito revela e inspira. 

Cardeais, bispos e católicos que lutam contra o sínodo da Amazônia não fazem isso porque estão contra a ordenação de homens casados ou contra que se deem ministérios às mulheres. O problema é pior. São como o filho mais velho da parábola de Lucas 15 que fica com raiva quando descobre que o pai está acolhendo de volta o filho pródigo que se perdera. Não querem abrir mão do privilégio da salvação da qual se sentem proprietários exclusivos e com direitos diante de Deus. Que o papa e o sínodo dialoguem com culturas amazônicas e reconheçam que nelas existe sabedoria divina e amor, isso é considerado por eles como heresia. No final do século I, a comunidade de Lucas contou esse evangelho para dizer que Jesus tinha preferido a fé do samaritano herege e que praticava sincretismo do que a dos religiosos judeus que não davam prioridade à relação afetuosa e pessoal. No século IV, ao comentar um salmo, Santo Agostinho dizia: “Conheço muita gente que pede a Deus curas e favores, dons de todo o tipo, mas conheço poucos que pedem não apenas o dom, mas o próprio doador dos dons. E isso é o mais importante”.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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