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A relações de gênero e a utopia de Jesus

As relações de gênero e a utopia de Jesus

              Nesse 32º domingo comum do ano C, o evangelho de Lucas (20, 27- 38) nos traz o único contato que os evangelhos mostram ter havido entre Jesus e a classe dos sacerdotes do templo (os saduceus). 

Os evangelhos, escritos nos anos 80 e 90, revelam muitos conflitos entre Jesus e dois grupos ligados ao templo: o dos fariseus e o dos escribas. Como esses dois grupos eram os que coordenavam o Judaísmo rabínico depois da destruição do templo (ano 70), provavelmente essas polêmicas de Jesus com fariseus e escribas revelam os debates e dificuldades das comunidades cristãs do final do século I com o Judaísmo dos rabinos. No entanto, mesmo que esses conflitos tenham sido historicamente de Jesus, eram conflitos com grupos de leigos, ligados ao templo, mas leigos. O que parece certo é que com o grupo dos sacerdotes (saduceus), Jesus praticamente não teve contatos.  Eles representavam a religião atrelada ao poder imperial. E a única coisa que sabemos sobre esse grupo que se dizia descendente do sumo sacerdote Sadoc (por isso se chamavam saduceus) é que aceitavam como livros sagrados só a Torá (o Pentateuco) e não acreditavam na ressurreição. Conforme o evangelho de hoje, é esse o assunto da polêmica que procuram com Jesus. Esse estava em Jerusalém já consciente do que lhe ia acontecer. Por isso, esse debate sobre a ressurreição que, para nós parece um assunto meio estranho. Penso que nenhum/a de nós escolheria esse texto do evangelho para ler em um encontro com juventude ou com pessoas de fora da Igreja e ligadas à cultura contemporânea. No entanto, para Jesus, deve ter soado como se aqueles homens religiosos estivessem discutindo a sorte dele. Você vai morrer inutilmente e nada vai sobrar de tudo isso. Mas, para Jesus, a ressurreição não é apenas a questão da sua vida pessoal. Não é apenas ressurreição do corpo. É ressurreição da vida. Isso significa que é a ressurreição do projeto de Deus que é Deus dos vivos e não dos mortos. Portanto, o que está em jogo é o projeto divino. 

O texto parece totalmente preso à cultura antiga. Para se compreendê-lo, é preciso entender na cultura judaica antiga a chamada “lei do levirato” , segundo a qual, por direito, uma mulher que fica viúva pertence ao parente mais próximo do falecido, portanto, pertence aos homens da família e, assim, a herança do falecido continua com a família dele.  

Os saduceus contam para Jesus uma história quase impossível da mulher que fica viúva de sete irmãos com os quais foi casando sucessivamente. Os saduceus querem saber de qual dos sete ela será mulher na ressurreição dos mortos. E Jesus responde: Vocês estão errados em imaginar a ressurreição como continuidade dessa sociedade patriarcal na qual a mulher sempre pertence a algum homem. Na ressurreição, todos serão como anjos, isso é, livres. Não haverá casamento patriarcal.

Quando eu era jovem, ouvi esse evangelho contado por monges para justificar o celibato: os celibatários inauguram desde agora um estilo de vida que é essa que Jesus anuncia ser a dos anjos do céu: não casam, nem se dão em casamento. Mas, esse tipo de interpretação é projeção dos costumes da Igreja medieval na cultura dos evangelhos e de Jesus que, de modo algum, imaginava celibato. A cultura semita era de valorização das relações corporais e da família, só que patriarcal e para preservar a propriedade patriarcal. E é essa cultura que Jesus contesta e diz que o reino de Deus deve superar.  

Atualmente, a discussão sobre esses assuntos não incide mais sobre celibato. Em grupos conservadores de Igreja a discussão agora é sobre o que chamam de “ideologia de gênero”. É triste ver ministros cristãos, em nome de Jesus e do evangelho, inventarem “ideologia de gênero” e lutar contra esse fantasma que eles mesmos inventaram. Pior ainda perceber que fazem isso para defender o Patriarcalismo e lutarem contra a liberdade das pessoas e a igualdade nas relações de gêneros. 

Exatamente como os saduceus da época de Jesus, membros da classe alta que dominavam o templo, esses sacerdotes do Antigo Testamento de hoje, sejam católicos, sejam evangélicos ou pentecostais, identificam a fé e a religião com a cultura patriarcal. Jesus os combate. Deixa claro que a ressurreição ou seja a utopia que, em nome de Deus, ele traz ao mundo e a nós vai transformar todas as estruturas humanas e inaugurar nova forma das pessoas se relacionarem. 

Para mim, esse evangelho ensina que não é possível ser revolucionário no ponto de vista social e político e, ao mesmo tempo, ser fechado e conservador no ponto de vista moralista e humano. Também aprendo que o evangelho me chama a sempre antecipar a utopia de um mundo novo possível aqui e agora no meu modo de ser. 

Existe sim um chamado divino a viver hoje as relações afetivas e sociais de um modo novo que antecipa o reino de Deus e a ressurreição. Vivemos isso quando conseguimos desprivatizar a fraternidade, alargar a comunhão das pessoas que amamos para um amor cada vez mais amplo. É isso que me vem ao coração quando escuto “Gracias à la Vida” de Violeta Parra. O que ela canta ali é a alegria de um amor apaixonado e, portanto, único, mas que é tão forte que transcende e a faz amar os outros. “Ao ver teus olhos, amo os olhos de todas as outras pessoas”. “Ao ouvir tua voz, aprendo a escutar com amor os outros”, Ao sentir teus passos, passo a amar os passos de todos os humanos” e assim por diante. Penso que esse é o desafio de uma transcendência no modo de amar. É o que nos evangelhos, Jesus diz de forma contundente e provocadora: “Quem faz a vontade de Deus é esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3, 35).  

Sobre a vida depois da morte, o próprio Jesus não esclarece nada e a única coisa que diz: Deus é “Deus dos vivos e não de mortos”. Para afirmar isso se baseia no relato do Êxodo da aparição de Deus a Moisés na sarça ardente (Êxodo 3). Isso significa que Deus é Deus ao se apresentar como Libertador. Apresenta-se como Deus de Abraão, Isaac e Jacó que para Moisés eram ancestrais que tinham morrido, há muito tempo. Mas, que para Jesus, estão vivos. Isso revela a importância da nossa relação com os ancestrais. A sociedade atual rompeu com isso e a própria fé cristã, inserida nessa cultura de produção e consumo acha até certo primitivismo ou superstição a relação das tradições indígenas e afrodescendentes com os ancestrais. No Brasil, novembro é o mês da união e consciência negra. É importante que nós, cristãos e cristãs, possamos dar o testemunho de valorizar tradições religiosas afro e com elas aprendermos a ser mais humanos e amorosos. Esse evangelho de hoje nos chama a retomar essa relação de amor e de memória afetuosa e aprendizado permanente com os/as parentes que nos antecederam. Podemos fazer isso, sendo, ao mesmo tempo, livres para viver um tempo novo e um jeito novo de ser como testemunhas da utopia na qual acreditamos e que desde já somos chamados/as a viver.  

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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