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As tentações que fazemos a Jesus

As tentações aos quais submetemos Jesus 

 Sempre procuro interpretar o evangelho a partir da realidade. O caminho e o estilo de vida de alguém dependem muito das escolhas que são feitas e do projeto que a pessoa ou comunidade faz para a vida. 

Tentação não significa uma prova a vencer. Não é uma espécie de teste no qual se escolhe entre o bem e o mal. Tentação significa a escolha de um projeto de vida que temos de discernir entre duas ou diversas alternativas. Jesus sempre teve de escolher. Cada escolha tinha suas vantagens e seus limites. Cada escolha poderia até ser vista como sendo agradável a Deus. É a partir desse olhar que convido vocês a lerem esse evangelho do 1º domingo da Quaresma (Mateus 4, 1- 11). 

De acordo com a Bíblia, o antigo povo de Deus foi tentado no deserto. Assim também, durante toda a sua vida, Jesus teve de enfrentar tentações. Mateus conta as tentações de Jesus no deserto como uma espécie de “haggadá” (um conto) sobre as tentações de Israel no deserto. O povo dos hebreus enfrentou as tentações, ou seja, teve de definir o seu projeto de sociedade no deserto. A Bíblia conta que ali passou 40 anos. Jesus passa ali quarenta dias. Assim como o povo teve fome, também Jesus enfrenta essa provação. Teve de enfrentar e vencer as mesmas tentações de Israel no deserto. Eram as tentações também  da Igreja cristã 80 anos depois de Cristo, na época em que a comunidade de Mateus escreveu esse evangelho. 

Para Jesus, as tentações foram no sentido de como ele iria cumprir a sua missão. Conforme o evangelho, ao ser batizado, Jesus descobriu ser filho de Deus no sentido de alguém que Deus delega ao mundo para realizar o seu projeto para a humanidade. Ao sair do batismo, o Espírito Santo o empurra para o deserto, para a solidão consigo mesmo, afim de decidir como iria cumprir essa missão . No relato poético desse evangelho, Satanás sempre começa a tentação dizendo a Jesus: Se tu és o filho de Deus...

O diabo propõe a Jesus um modo de ser filho de Deus a partir do poder, a partir do milagre e a partir do religioso. Não eram tentações pessoais no sentido do orgulho, da vaidade, ou outra virtude moral. A tentação era o que Jesus faria para garantir a vitória da sua missão. Como ele agiria para garantir que o reino de Deus que ele anunciava não fracassaria. 

Como garantir que o projeto divino para esse mundo, projeto que vai muito além da religião não fracasse se Jesus se sente chamado a renunciar por amor ao poder religioso e também social e político? 

Jesus sempre responde ao diabo com a própria Palavra de Deus. Jesus aceita a insegurança no futuro, tanto para si mesmo como quanto ao que é mais difícil para ele: a sua causa. É a sua fé como entrega total nas mãos do Pai que é sua vitória na tentação. 

Infelizmente, até hoje, a maioria das pessoas que assumem o poder nas instituições eclesiásticas e muita gente nas Igrejas continuam a acreditar que Jesus cedeu às tentações e seguiu o caminho proposto por Satanás: aproveite o poder a seu favor que você poderá salvar o mundo. Sem poder, como vai conseguir fazer alguma coisa? Mostre que faz milagre. O sangue de Jesus tem poder. Conquiste o mundo e aí sim você será Salvador. 

Jesus se sentiu tentado a isso, mas resistiu. Percebeu que a Palavra de Deus e as profecias do Servo Sofredor indicavam outro caminho: a cruz, isso é, a inserção no meio dos pequenos e marginais e a solidariedade aos excluídos. E ele optou por isso. Um dia, ao anunciar aos discípulos essa sua decisão, teve de brigar com Pedro, seu amigo e companheiro. Pedro lhe disse: De modo nenhum, isso vai acontecer com você. Deus não vai permitir.

Jesus diz a Pedro:  Passa para trás, Satanás. Tu não compreendes nada do projeto divino. O teu modo de pensar é do mundo  (Mt 16, 23). 

Hoje, estou convencido de que o diabo que tentou Jesus no deserto foi a própria comunidade cristã para a qual Mateus escreveu o evangelho. Os cristãos dos anos 80 não aceitavam um Jesus que não fosse propriedade deles e para lhes dar força e poder. Durante os seus 21 séculos de história, as Igrejas cristãs vivem o tempo todo essas tentações. Elas falam da “santa cruz”, tornaram a cruz objeto de adoração, colocam a cruz no altar e no pescoço das pessoas, mas tiraram a cruz do seu  caminho de vida como projeto de missão e como caminho que Jesus escolheu e escolhe hoje. Quem não compreende o Cristianismo social e a inserção em uma espiritualidade libertadora não compreende a cruz de Jesus e fica com o Cristianismo que o diabo propôs a Jesus.

Nesse Carnaval de 2020, a Escola de samba da Mangueira escolheu como tema do seu desfile: A verdade vos fará livres e trouxe para a avenida um Jesus da gente, identificado com os oprimidos e excluídos da sociedade. Grupos religiosos tradicionalistas fizeram tudo para proibir esse desfile e ameaçam processar a escola. Isso ocorre porque esses eclesiásticos católicos, evangélicos e pentecostais preferem o projeto messiânico que o diabo propôs a Jesus e ele rejeitou. Continua ocorrendo hoje o que, no século XIX, Dostoievski contava na Lenda do Grande Inquisidor. O arcebispo de Sevilha dizia a Jesus: O      que você veio fazer aqui Não precisamos de você. Até hoje, você ainda não se deu conta de que o outro (o diabo) tinha razão. A humanidade não está preparada para a liberdade que você quer.

                    É importante que a meditação das tentações de Jesus e de como ele as venceu possa ajudar as Igrejas cristãs de hoje a retomarem o caminho do deserto e refazerem as opções fundamentais da fé. A Campanha da Fraternidade com o seu tema Fraternidade e a Vida como compromisso e dom e o lema: Viu, teve compaixão e cuidou dele/dela é o caminho. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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