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Conversa, quinta feira, 03 de dezembro 2015

Nesses dias, a pedido de uma editora italiana, preparo um livrinho que medita a bem-aventurança da consolação: Felizes as pessoas que choram, porque serão consoladas.

É uma coleção de pequenos livros, de autores diferentes, cada um meditando sobre uma das bem-aventuranças do evangelho de Mateus. O meu será sobre a das pessoas que choram. 

Ontem escrevi a introdução: 

Quando o mundo nos faz chorar

Por várias circunstâncias da vida e, certamente, por uma vocação dada por Deus, sou monge peregrino. Procuro viver a peregrinação do coração da qual falava São Bernardo (“o importante não é peregrinar com os pés e sim com o coração no caminho da conversão para Deus”), mas por solidariedade e cuidado com meus irmãos e irmãs, Deus tem me dado um ministério da palavra que tem se estendido pelo Brasil de norte a sul e mesmo por outros países como a Itália onde me considero como em minha segunda pátria.

Muitas vezes, em minhas viagens, me recordo de uma aventura que vivi em uma de minhas primeiras missões como assessor da Pastoral da Terra no interior do Brasil. Era janeiro de 1979 e, como é comum nessa época do ano, no centro-oeste do país, é tempo de muita chuva. Em um meio dia de sábado chuvoso, chego à estação rodoviária de Barra dos Garças para tomar o ônibus para Cuiabá, capital do Mato Grosso, onde eu iria assessorar um encontro de Pastoral da Terra. Barra dos Garças é uma cidade situada bem no centro geográfico do Brasil, na fronteira entre o estado de Goiás e Mato Grosso. Naquela época, ainda uma cidade pequena e cercada de estradas de terra, quase todas interrompidas pela chuva naquela época do ano.

Ao me aproximar do balcão da empresa de ônibus para comprar meu bilhete, vejo três jovens índios. Pelo modo de vestir-se e sinal característico da orelha furada,  identifico como Xavantes. Eles estavam sendo expulsos da rodoviária por guardas do local. Sem me identificar quem sou, tomo a defesa deles e pergunto por que fazem isso com eles. Um dos guardas me explica:

- Xavante é sempre encrenqueiro, criador de conflitos. Querem viajar sem pagar. Se não têm dinheiro, vão a FUNAI e peçam o que precisam. Mas, aqui não ficam.

Procurei ouvi-los e fiquei sabendo que tinham vindo do escritório da FUNAI. Eles estavam muito angustiados porque, naqueles dias, na aldeia onde moravam, surgira uma epidemia de coqueluche e já matara cinco crianças. Outras estavam doentes e em risco de vida. Precisavam com urgência de vacinas e de medicamentos. No escritório da FUNAI, os funcionários haviam dito que poderiam mandar um motorista com uma camionete alta, capaz de atravessar os atoleiros em estrada de terra e ele levaria um enfermeiro com os medicamentos e a vacina. No entanto, esses dois não queriam viajar somente em companhia de Xavantes. Tinham medo. Só iriam com eles se alguém “de responsabilidade” aceitasse ir junto para acalmá-los caso surgisse algum imprevisto na viagem.

Voltamos juntos à FUNAI, eu e os três índios. Discutimos com os funcionários. Eles não cederam em nada. Sem “alguém de responsabilidade” , eles não iriam. Como ali, naquele momento, eles acharam que eu seria essa “pessoa de responsabilidade”, renunciei à minha ida a Cuiabá, desisti do encontro da Pastoral e assumi acompanhar aqueles três jovens xavantes para levar remédio para as crianças doentes de uma aldeia perdida no norte do Mato Grosso, perto da cidade chamada Couto Magalhães.

Viajamos em uma camionete aberta. Chuva que Deus dava. Eu e os índios atrás. Todos molhados e sujos de lama, já que a, cada momento,  tínhamos de descer da camionete e empurrá-las nos atoleiros. Geralmente, as rodas afundadas na lama mandavam lama para nós e nos faziam sentir seres da terra, como Adão foi criado por Deus.

Toda a tarde e noite de viagem. Como comida, laranja e um pouco de mandioca. E água. À noite, me disseram: Não podemos parar a camionete. Nessa região, ainda há muitas onças e elas caçam à noite. É perigoso parar o carro. Quando atolava, deixávamos o motor ligado... e as luzes acesas.

Fomos chegar na aldeia na segunda feira pela manhã. Assim que o carro despontou no horizonte, vi que crianças corriam na frente da camionete para avisar que estávamos chegando... Daqui há pouco, parávamos na entrada da aldeia. E ali um grupo de senhoras nos esperava. Eram tias e parentes dos três rapazes que voltavam de viagem. Elas começaram a chorar e a lamentar-se. Choravam copiosamente. No começo, eu não entendia por que. O funcionário da FUNAI me explicou que choravam pelos sofrimentos que os rapazes haviam vivido durante a viagem. De fato, de vez em quando um deles interrompia o pranto e, na língua xavante, que eu não entendo, fazia alusão a alguma coisa que tinham vivido. As mulheres, então, choravam mais ainda.

Aquilo era tão importante que só um outro parente tomou o enfermeiro pela mão e o levou ao posto de saúde improvisado para já começar a administrar as vacinas e a medicina.

O motorista da FUNAI me advertiu de que não poderia ficar com a camionete lá. Teria de voltar até uma cidade próxima para trocar de veículo e eu o teria de acompanhar. Era para ele a pessoa responsável por tudo... Tive de sair da aldeia assim sem poder me despedir dos rapazes que acompanhei. Não sei se eles se deram conta de que fui obrigado a voltar. Saí como cheguei, anônimo. Mas, contente de ter conseguido ajudar a aldeia. Foi meu primeiro contato com a cultura indígena.

No dia e meio que ainda tive de percorrer para voltar a Barra do Garça, aquele choro das mulheres me acompanhou. Eu não tinha ninguém que chorasse por mim, mas, ao me lembrar delas, pensei nas mulheres amigas do grupo de Jesus que, em Jerusalém, seguiam o caminho de Jesus para o calvário. Vendo-o com a cruz às costas e maltratado, elas choravam e batiam no peito. Mas, Jesus se voltou para elas e disse: “Filhas de Jerusalém, não chorem por mim. Chorem, antes, por vocês mesmas e pelos filhos e filhas de vocês. Porque, vão chegar dias em que as pessoas dirão: Felizes as mulheres que não geraram e os peitos que não amamentaram. Então, as pessoas começarão a dizer aos montes: Caiam sobre nós... Porque, se tratam assim a madeira verde, o que não farão à que está seca?”  (Lucas 23, 27 – 31).

Hoje, o que diria Jesus às filhas de Jerusalém ou às índias xavantes que choram os seus parentes que regressam de viagem?

Nesse mundo atual, quantas coisas nos fazem chorar? Os atos terroristas de grupos fundamentalistas. O terrorismo de Estados que se tornam violência institucionalizada e legal a invadir países dos outros e matar indiscriminadamente pessoas da sociedade civil. A tragédia de milhares e milhares de migrantes e refugiados mal acolhidos e discriminados nos países que se consideram ilhas de conforto em um mundo perdido. E as tragédias ecológicas que destroem o planeta. A maré de lama tóxica que assassinou um rio inteiro no Brasil...

Diante de tantas tragédias em proporção macro, as nossas pequenas tragédias de cada dia não deixam de ser importantes e merecerem nossas lágrimas. Mas, é preciso ligar tudo e perceber a conexão íntima que liga o pessoal e o social, o afetivo e o estrutural.

É preciso que seja para essa realidade, o nosso mundo atual e a nossa vida perdida em muitas viagens e sem ter sempre quem depois chore e se lamente por nossas dores que queremos meditar na palavra de Jesus: “Felizes as pessoas que choram, porque serão consoladas”.

É preciso aprofundar:

1 – Quem foram no tempo de Jesus e quem são hoje essas pessoas que choram.

2 – Por que choram.

3 – Por que serão consoladas

4 – Como isso acontecerá....  

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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