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Da justiça da lei à justiça do reino do amor

Passar da justiça da lei à justiça do reino de amor

                     Nesse 6º domingo comum (ano A), o evangelho de Mateus continua as palavras de Jesus no discurso da montanha (Mt 5, 17- 37). Ali Jesus explica que não veio abolir a lei e os profetas. A lei e os profetas significam a instituição religiosa. Jesus não quer abolir a religião mas propõe que ela seja para além de si mesma. O que ele critica é a religião que, por se basear em interpretação rigorosa da lei, acaba sendo totalitária.

Nos anos 80 do primeiro século, em comunidades formadas por pessoas de origem judaica, Mateus reuniu essas palavras de Jesus para mostrar que a proposta de Jesus não é de ruptura com a religião institucional, nem com a cultura do povo. O que ele pede é que os seus discípulos e discípulas sejam capazes de ir além da instituição. Procurem não o simples cumprimento da lei, mas o espírito que a própria lei queria incutir ao ser promulgada. E aí, ele dá exemplos de normas judaicas que ele não abole ou substitui, mas radicaliza. Começa pelo mandamento de não matar, defende a mulher que naquela sociedade podia ser repudiada pelo marido e propõe tal confiança na palavra dada que o juramento seja desnecessário e proscrito. 

Hoje, o papa Francisco fala de “Igreja para fora”, ou “Igreja em saída”. A gente pode dizer que Jesus propôs uma lei “em saída”, ou para fora de si mesma. Quando a lei se torna o eixo central, a motivação maior, ela se torna sagrada, absoluta. E serve apenas ao grupo de poder que a produziu. Jesus propõe que a gente supere a divisão das pessoas em boas e más e reconheça a dignidade e os direitos até dos nossos adversários. O marido cuide da esposa, mesmo quando, por acaso, não ama mais. Como Gandhi ensinava na sua ação libertadora não violenta, Jesus propõe desarmar o malvado ou alguém que nos odeia com o respeito e atenção ao que ele nos pede. A nossa missão é testemunhar um amor divino. E quando fazemos isso, a lei serve para nos ajudar a construir novas relações sociais. Aí sim a atenção ao irmão vale mais do que as oferendas apresentadas no altar. 

Jesus diz: o mandamento de Deus é não matar. Mas, isso não basta. Existem outros modos de eliminar uma pessoa sem precisar assassiná-la. Quem quer viver a justiça nova do reino não pode se deixar dominar pela ira, nem condenar um irmão ou irmã por uma palavra má (Cf Mt 5, 21- 26).

Jesus viveu em uma sociedade na qual a palavra tinha muita importância e força. Hoje, a publicidade e a comunicação banal esvazia a força das palavras. Entretanto, quantas vezes, nas comunidades, uma palavra falsa e injusta sobre alguém destrói profundamente o outro e as relações. Já vi uma comunidade ser destruída apenas pelo uso irresponsável e imprudente da palavra contra o outro. Por isso, de fato, Jesus exige muito cuidado com as palavras que a gente usa. Ele diz para nem chamar o outro de “sem juízo”. O termo usado no texto grego é raka,  que significa “não serve para nada”. E outro termo grego é “estar fora”. Hoje, a sociedade dominante considera todos os pobres como gente que não serve para nada. O papa denuncia que o mundo os considera como descartáveis

Outro assunto é o desejo  ou libido (5, 27- 30). Tomar consciência do nosso desejo é poder reorientá-lo e unificar o que cremos e o que queremos. No sermão da montanha, Jesus nos diz que o querer mal já é de certa forma realizar o mal. Desejar alguém sexualmente já tem algo de posse. Nós não somos inteiros sozinhos. Precisamos do outro, mas não podemos fazer deste outro objeto de nosso desejo. Temos de lidar com o desejo de modo que respeitemos o outro como outro. 

Desde antigamente, a Bíblia já proibia jurar em nome de Deus (Ex 20, 17). O que está por trás é a força da palavra. Gandhi usou a força da verdade como instrumento da sua luta não violenta. Jesus diz: seja o seu sim, sim e o seu não. Quem jura em nome de Deus, age como se tivesse recebido procuração de Deus para falar em seu nome. É a tentação das religiões. Jesus proíbe: ninguém pode usar o nome de Deus para fortalecer seus interesses próprios e as causas que defende.  

Antigamente eu achava que radicalidade se identificava com o rigor. Hoje eu vejo que é o contrário. Radicalidade é ir à raiz das questões e, portanto, possibilita flexibilidade, liberdade e amor. A radicalidade sempre se compõe com liberdade interior e social. O rigorismo é fundamentalismo estreito e fechado. Mas, na vida da gente, será que sempre conseguimos distinguir quando estamos sendo radicais no sentido evangélico e, quando, ao contrário, estamos simplesmente sendo rigorosos e fechados? 

O evangelho de hoje me interpela a me rever sempre para unir a coerência evangélica na minha vida. Trata-se de exigir de mim a radicalidade de proposta e abertura humana para colocar a outra pessoa como referência desse caminho em direção ao reino. 

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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