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Meditação bíblica, domingo, 11 de agosto 2013

Nesse domingo, as comunidades católicas e anglicanas leem um texto do evangelho (Lucas 12, 32- 48) no qual Jesus cuida da formação dos discípulos, ou seja, como podemos nos comportar para ser discípulos dele. Eis o que anotei sobre esse trecho do evangelho no meu livro "Conversa com Lucas":

Jesus formou seus discípulos e discípulas, antes de tudo advertindo contra elementos que, para ser discípulo ou discípula, a pessoa tem de evitar e se libertar: a tendência religiosa da hipocrisia e de viver nas aparências e depois a avidez ou ambição das pessoas do mundo. Agora, ele insiste na liberdade interior e no despojamento necessário à vida. Não é um convite maravilhoso para sermos mais ecológicos e aprendermos com a natureza?

Essas palavras vêm de uma tradição anterior ao evangelho. Foram postas neste contexto do discipulado, de fato, para mostrar que para sermos discípulos de Jesus, temos de aprender a escutar a voz divina expressa na natureza. Há uma revelação divina que se expressa nas plantas e nos animais. Para a lei de Moisés, o corvo era considerado um animal impuro (Lv 11, 15 e Dt 14, 14). Entretanto, Jesus nos diz: “aprendam com ele!”

Ivo, sociólogo e analista da sociedade e das religiões, comenta:

- Isso que o evangelho diz de que “a vida vale mais do que ter alimento e ter com que se vestir” é bonito. Compreendemos que não adianta nos preocupar com isso. Mas, essa forma de falar não parece um ideal meio estóico para as comunidades? No mundo antigo, dos grupos filosóficos conhecidos, os estóicos eram os que pregavam o despojamento das coisas do mundo. Como uma comunidade de gente pobre e que tem de lutar pela vida no dia a dia vai receber este tipo de recomendações? Não é contrário, por exemplo, a uma teologia da libertação que sempre se preocupou com as condições reais de vida das pessoas?

- Sua preocupação é justa e sua pergunta pertinente. Mas, é preciso compreender o contexto no qual essas palavras foram ditas. O discipulado de Jesus exige uma radicalidade muito grande e um equilíbrio. Não se trata de menosprezar as condições materiais, como os estóicos faziam. Jesus não manda a gente viver como os corvos ou como os lírios do campo. Nós não somos nem pássaros nem flores. Ele diz: “Observem, aprendam a lição que vem deles”. Não diz: “façam como eles”. É uma lição bíblica. Olhem o salmo: “O Senhor faz brotar a erva nos montes, dá alimento ao rebanho e às crias do corvo que grasnam” (Sl 147, 8-9). A tradição profética conta que, durante uma grande fome, o Senhor mandou um corvo trazer alimento para o profeta Elias no monte Carmelo (Cf. 1 Rs 17, 4- 6). De modo algum, Jesus faz o elogio da imprevidência. O que ele pede é a confiança em Deus. Tudo se resume na palavra: “Procurem, antes de tudo, o reinado divino que tem como sinais a justiça, a fartura, a igualdade, a comida para todos”.

Não é diferente do que prega a teologia da libertação porque é um ensino sobre a vida: A vida é mais do que a comida e a veste. O importante é a vida. A teologia da libertação é a teologia da centralidade da vida, das condições reais como a política, a economia, a corporalidade, o erotismo e a relação do ser humano com a natureza.

Ivone Gebara, amiga teóloga e profetiza da espiritualidade feminista, escreve:

- “Em muitos lugares, quase não existe mais o convívio com o verde, o azul do céu, com as estrelas e a lua nas suas fases, com o ar puro. Quando muito, pela manhã, em algumas cidades, se respira um monóxido de carbono um pouco mais leve! Quase não encontramos fontes de água pura nem o ar que revigora o corpo. Tudo isso fazia parte de uma experiência religiosa presente nos salmos (como nos Evangelhos). A destruição das matas e a poluição tomam conta das grandes cidades e do campo e já não se tem o correspondente experiencial das palavras que expressam sentimentos religiosos. As liturgias repetem os mesmos cantares como se espécies de animais e plantas não corressem o risco de extinção. A religião repete o igual sem perceber que tudo já é diferente. Embora essa repetição guarde certo encanto, uma resistente poesia, já não é capaz de atuar eficazmente nos corações humanos”[1].

 

- Temos de levar em conta essa denúncia profética, criar em nós uma sensibilidade nova e nos engajarmos não para voltar ao passado, mas para descobrir formas de nova relação entre o ser humano e a natureza. Nos anos mais recentes, povos indígenas dos Andes e de outras regiões do continente têm se unido em conferências que chamam “Minga (mutirão) em defesa da Mãe-Terra”. As Igrejas e comunidades nossas deveriam, urgentemente, participar deste mutirão e reinventar mutirões assim nas diversas camadas da população.

“Lao Tse (o sábio chinês) proclamou o “we wu wei” (a ação pela não ação). O santo sabe quando e como agir ou não agir. Em muitos casos, o não agir é uma ação em si mesma. A pessoa sábia age não por impulso, mas guiado pela sabedoria. Isso não significa ter de “esperar sentado que o mundo caia a seus pés”, mas significa utilizar a sensibilidade, a firmeza, a amabilidade, a delicadeza, em sintonia com o Ser (o Eu interior, o Self) ao invés da rudeza de tratamento, do impulso, da descortesia ou da força.

- Sobre a vigilância (Lc 12, 35 – 48).

Se fôssemos filmar essas cenas, veríamos mais claro que todas elas se passam à noite. De fato, essas sentenças de Jesus me lembram muito a Vigília Pascal, a noite na qual esperamos na celebração, mas também na vida concreta, o Senhor que vem. Lucas parece dizer que nós cristãos vivemos em uma espécie de noite permanente esperando a vinda do reino. É uma longa vigília de Páscoa. As comunidades precisam permanecer atentas e vigilantes, Entretanto, ao mesmo tempo, o senhor ou senhora pode tardar. Isso significa que a comunidade de Lucas já precisou mudar a concepção da primeira geração cristã que pensava que o Senhor viria logo. No tempo das comunidades paulinas, se pensava que a vinda do Senhor (a parusia) seria imediata. “O tempo é breve. A figura deste mundo passa!” (1 Cor 7). No tempo de Lucas, as comunidades já perceberam que não é assim e que o cristão tem de se engajar na história, ao mesmo tempo, sem deixar de esperar.

Temos de esperar sim a vinda do reino. No entanto, o mundo e a vida não são somente uma câmara de espera sem importância e na qual estamos só aguardando a vinda do reino... Por isso, as comunidades recordaram algumas parábolas de Jesus que ensinam: temos de continuar trabalhando e atuando. Não se espera o Senhor de braços cruzados. Só nessa breve passagem, são três parábolas: a primeira é a do patrão ou patroa que vai para uma festa de casamento e pode chegar de noite ou de madrugada. A segunda parábola é a do ladrão que ninguém sabe a hora em que assalta a casa. A terceira é a do administrador ou administradora fiel que está pronto a qualquer momento a prestar contas de sua gestão. Então, o erro fundamental de quem é cristão seria pensar que o Senhor tarda e por isso podemos viver tranqüilos sem espera (v 45). Vivemos este problema na nossa comunidade. Era importante novamente acordar o pessoal para a prontidão e a vigilância. 

- Hoje, muitas vezes, vivemos os mesmos problemas. No final dos anos 80 e começo dos anos 90, muitas comunidades cristãs viveram uma crise de esperança e de perspectiva. Talvez, por isso, muitos aderiram a movimentos pentecostais. Foi uma forma de retomar a esperança. É certo que que a fé cristã conjugue uma dimensão pentecostal de fé no Espírito e expectativa do reino e, ao mesmo tempo, uma opção revolucionária para atuar aqui e agora. No fim dos anos 70, em Goiás, lavradores de círculos bíblicos e grupos do Evangelho publicaram pela editora Tempo e Presença: “Estudos bíblicos de um lavrador”. Um dos textos bíblicos comentados foi essa parábola e os lavradores escreveram o seguinte: “Este evangelho mostra como Deus age. Quanto mais a gente consegue da vida, mais tem que coloca-la a serviço de todos. Mas, na nossa realidade, não tem sido assim. Quanto mais a pessoa tem, mais quer para si. (...) Nós todos somos empregados de Deus”.

Outro lavrador disse: “Esses empregados desonestos não são mesmo os cristãos? A Igreja toda não aprece que largou o serviço que devia ter feito há muito tempo? Por que, depois de tantos anos, este mundo chamado cristão, está ainda cheio de tanta injustiça e desigualdade?”[2].

No começo dos anos 40, em um cárcere nazista, o teólogo e pastor Dietrich Bonhoeffer escreve em uma de suas cartas: “A Igreja só é Igreja quando existe para os outros. Para fazer um início, ela deveria entregar todo o seu patrimônio aos necessitados. Os ministros devem viver exclusivamente dos donativos voluntários da comunidade, talvez além de exercer alguma profissão profana. A Igreja deve participar das tarefas da vida na coletividade humana, não como quem governa, mas como quem ajuda e serve”[3]. 

[1] - IVONE GEBARA, Teologia Ecofeminista, São Paulo, Olho dágua, 1997, p. 92.

[2] -  OS ESTUDOS BÍBLICOS DE UM LAVRADOR, Tempo e Presença, suplemento n. 25. agosto de 1979, pp. 50 ss.

[3] - Coletânea de trechos das cartas in CEI, in Missão Profética, Suplemento 9, setembro 1974, p. 18.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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