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Meditação bíblica para o 3° domingo da Páscoa, 19 de abril 2015

Nesse terceiro domingo da Páscoa, escutamos no evangelho uma das aparições do Senhor ressuscitado à comunidade dos discípulos e discípulas: Lucas 24, 36 ss.

Essa última página do evangelho de Lucas é maravilhosamente bem escrita e profunda, mas tem algo de estranho. Nos versículos anteriores, os discípulos reunidos em Jerusalém tinham dito aos dois companheiros que tinham voltado de Emaús: “É verdade! O Senhor ressuscitou realmente!”. Agora, nesse relato, aqueles mesmos que tinham dito aos que voltavam de Emaús: O Senhor ressuscitou realmente, eles mesmos, de repente, diz o texto, "não acreditaram e que duvidavam. O que significa isso? Não há uma certa incoerência entre um relato (o de Emaús) e esse da aparição de Jesus ao grupo de discípulos e discípulas?

De fato, este relato tem certa independência do outro. Apesar de dizer que os discípulos de Emaús ainda estavam falando, quando Jesus se deixou ver pelo grupo todo (v. 36), este relato de aparição pertence a uma tradição diferente das anteriores. As “aparições” (o evangelho não usa essa expressão) a pessoas particulares, como as mulheres, a Pedro e mesmo aos dois de Emaús tem um estilo e um tipo de conteúdo. As “aparições mais oficiais” ao grupo dos discípulos (no qual, com razão, vocês estão incluindo as discípulas) tem outro estilo e até um objetivo diferente ou específico. Elas servem para fundamentar a missão de toda comunidade eclesial: dar testemunho do Ressuscitado. Por isso, este tipo de relato parte da dúvida à fé e do medo à coragem. Essa narração parece paralela à mesma cena do quarto evangelho (Jo 20, 19 ss). Só se diferenciam em alguns detalhes. Comumente, o primeiro elemento é a iniciativa livre de Jesus. Ele se apresenta ou se deixa ver. A seguir, vem a reação dos discípulos (e discípulas). O texto ressalta a dúvida e incredulidade deles. Mas, isso é importante para deixar claro que a fé não é algo natural ou espontâneo. Não se crê na ressurreição a não ser através da palavra divina e da iniciativa divina. Finalmente, o terceiro elemento é a missão da Igreja que decorre do Cristo ressuscitado.

- O texto diz que os discípulos pensam estar vendo um fantasma. Mais ainda: que Jesus discute a questão: um fantasma não tem carne o osso, como vocês vêem que eu tenho. E lhes mostra as mãos e os pés, feridos pelos pregos da cruz. O ressuscitado é vitorioso, mas não deixa de ser ferido. E é humano. Ele insiste na corporalidade. Já vimos que isso é importante para a cultura grega que tendia a falar na imortalidade da alma, mas desprezava o corpo. Por isso, ele come “diante deles”. Para eles, comer era sinal de vida e, portanto, de ressurreição. Na maioria dos países, os movimentos sociais conseguiram criar o consenso de que a segurança alimentar é um direito básico de todos e o Estado deve cuidar disso. Este direito básico à alimentação e, portanto, à vida tem sido incorporado às novas Constituições que, na Bolívia, Equador, Venezuela e outros países da América Latina, os povos vem conquistando.

Conforme Lucas, ao aparecer aos discípulos e discípulas, Jesus lhes garante que enviará, como aqui foi traduzido: “a pessoa que o Pai lhes prometeu” . Comumente, outras traduções falam em “aquele que o Pai prometeu”. A Bíblia do Peregrino prefere traduzir:  “eu lhes mandarei a promessa do Pai” (p. 2541). Quando, em português (ou nas línguas modernas), se fala em “Espírito”, o termo automaticamente é masculino. E novamente parece se tratar de uma visão patriarcal da divindade. No hebraico, o termo espírito (ruah) é feminino, como na religião dos Orixás, Iansã, a manifestação divina na ventania na tempessade, é feminina. Quando olhamos a Bíblia e mesmo especificamente os textos evangélicos, as atribuições do Espírito são, em grande parte, tarefas ou atributos que, na maioria das culturas, são ligados à mulher, como consolar, aquecer e defender como uma mãe defende seu filhinho ou filhinha. É claro que isso é cultural, mas a teologia cristã oriental (antiga), principalmente, síria, desenvolveu muito a adoração do Espírito Santo como mãe carinhosa.

E da palavra do Cristo ressuscitado e do presente  que, através de Jesus, Deus nos dá (o dom do seu espírito maternal) é que vem a missão das Igrejas. Qual é essa missão? Este texto de Lucas diz: “anunciar a conversão para o perdão dos pecados a todas as nações, a partir de Jerusalém”. O que significa isso, hoje? No vocabulário bíblico a conversão ou o arrependimento tem muito a dimensão de “mudar de caminho”, fazer uma meia-volta no caminho da vida. Hoje, como nunca, a sociedade humana é chamada a essa reviravolta de caminho no sentido de mudar o modelo social, político e econômico do mundo. Precisamos de um modo de organizar a sociedade que leve em conta o respeito e a comunhão com a natureza, privilegie a justiça social e o direito dos empobrecidos, assim como retome a possibilidade de cada pessoa se reencontrar a si mesma/o em uma síntese de construção da própria pessoa.

Para nós, cristãos, a missão não deveria ser a pregação apenas de uma religião ou menos ainda de uma doutrina. É o testemunho de um modo de viver e mais amplo e universal do que aderir a uma confissão religiosa.

A morte e a ressurreição de Jesus possibilitam essa mudança de caminho de vida (conversão). Para isso, é fundamental uma radical transformação de mentalidade (em grego, metanoia). Essa conversão de vida e de mente é fruto do Espírito, mas também precisa ser acolhida por cada pessoa e por todos. É uma proposta não somente individual, mas comunitária (eclesial) e coletiva. Por isso, o texto diz que o anúncio é dado às nações, isto é, às estruturas coletivas dos povos e das culturas (não está se referindo aos Estados ou governos). É mais uma vez o jeito de Lucas insistir que a adesão ao projeto divino para o mundo passa pelas estruturas sociais, políticas e econômicas da sociedade. É uma mudança do mundo.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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