4ª circular do Diário (não cotidiano) desta Quarentena.
Recife, véspera ou vigília de Pentecostes, 30 de maio de 2020
Queridos irmãos e irmãs,
Nestes dias, tenho procurado intensificar um estado permanente de oração. Às vezes, consigo. Às vezes, não. Creio que a oração não é apenas reza que a gente faz quando recita textos ou participa de cultos. É postura de todo o ser interior que se coloca como alguém apaixonado à espera da pessoa amada, quando sabe que ela vai chegar. Atualmente, minha forma de crer em Deus tem mudado de expressão. Não se trata mais de adorar um Deus superior e que viria de fora para me visitar. Creio que o Espírito de Deus, Amor Divino, está dentro de cada um de nós. Reverencio e reconheço a presença e atuação dele em cada pessoa com a qual convivo. Devo nutrir essa presença em mim e preciso muito escutá-la. Quero acariciá-la como o que tenho de mais precioso. Vivo esta relação com Deus como alguém apaixonado que, dormindo ou acordado, está com o coração ligado à pessoa amada.
Peço a Deus a graça de não julgar essa multidão de lives, novenas e cultos que vejo acontecerem por aí pela internet. Recebo notícias de muitas rezas de terço e novenas para Nossa Senhora disso ou daquilo. Vejo padres e religiosos jovens, com vestes eclesiásticas, ou hábitos da sua ordem, de um modo que os mais velhos de linha aberta nunca usaram nem usam. Aparentemente, isso não tem importância. Alguém pode achar que é mera questão de gosto. Alguns até justificam dizendo que o povo gosta. Pois é. Sempre gostou. Baseado nisso, esses irmãos aos quais Jesus pede que sejam profetas e inseridos como irmãos, no meio do povo de Deus, sem se diferenciar pelo sagrado de vestes e de costumes, não percebem que assim reforçam o Catolicismo tradicional. Ao fazerem isso, engrossam o pessoal que faz oposição à linha do papa e vão contra a renovação da Igreja.
Ingenuamente eles reconstituem o Catolicismo devocional dos tempos de minha avó e se afastam deliberadamente de uma espiritualidade bíblica e litúrgica. E isso tem sim certo apelo popular, porque toca mais no sentimentalismo e na sensibilidade das pessoas que gostam disso. No entanto, assim no mundo inteiro, está sendo fortalecido a rede de católicos de direita que fazem vídeos na internet pedindo a volta das missas e aqui e ali criticando abertamente o papa Francisco. Sofro quando vejo jovens religiosos abertos retomando o Catolicismo devocional barroco (anterior ao Concílio Vaticano II) e assim fortalecendo um tipo de devocionalismo nada litúrgico nem bíblico que na minha juventude a Igreja já tinha superado e que a partir de João Paulo II voltou com força. São devoções e expressões da fé que seriam legítimas (sou a favor da diversidade e do pluralismo dentro da Igreja), mas se tivessem o menor conteúdo teológico e a mais leve que fosse densidade interior e de ligar fé e vida.
Diante dessa proliferação desses ruídos religiosos superficiais que enchem a internet nestes dias, prefiro retomar o mandamento do Sinai: “Não pronunciarás o nome do Senhor teu Deus em vão...” (Ex 20, 7). Busco retomar a teologia e a espiritualidade que a tradição cristã chama de apofática (aquela que define o que Deus não é e respeita o mistério do que Ele é).
Penso e vivo assim, buscando a intimidade do Espírito em cada momento da vida; quando me relaciono com as pessoas, quando diariamente leio a Bíblia, quando expresso a fé junto com os outros. Vivo essa espiritualidade quando vejo um filme. Isso não impede que sinta necessidade (pedagógica e psicológica) de celebrar o memorial da nossa fé. Em minha história de monge, durante anos e anos, a celebração da Páscoa foi alimento e força que me sustentou na caminhada pelos desertos da vida. Tem sido oásis de festa e encantamento. Mas, isso supunha uma comunidade de vida e uma liberdade no modo de celebrar que não posso improvisar. Hoje perdi a comunidade de vida e de oração que tinha no mosteiro de Goiás, mas não posso me deixar paralisar pela nostalgia. Sinto falta, mas vou adiante aberto aos alimentos que, hoje, Deus me dá para me nutrir. Graças a Deus, estes nunca faltam. A relação afetuosa e o trabalho com amigos/as jovens têm sido forte alimento espiritual. Isso não impede a recordação. Como gostaria de celebrar este Pentecostes com uma fogueira no bosque, o encantamento de invocações ao Espírito vindas de várias tradições religiosas e a ação de graças pela aliança de intimidade que Deus sela conosco. Deixar-me ser possuído pelo Espírito em uma possessão divina, mais íntima e profunda do que a união sexual e mais renovadora do que qualquer fonte da juventude.
Hoje à tarde, uma paróquia de Veneza na Itália conectou-se comigo e na vigília de Pentecostes que aquela comunidade fez à noite (aqui no Brasil às três da tarde), fui entrevistado e dei uma palavra sobre o Espírito Santo como força e luz neste momento da pandemia. Falei sobre a realidade dos povos indígenas, sobre a pandemia nas periferias e a indiferença com a qual o desgoverno brasileiro trata o povo.
Quero que seja minha oração e meu caminho um poema-oração que Dom Helder escreveu em uma de suas circulares: “Bendito sejas, pela sede que despertas em nós,
pelos planos arrojados que nos inspiras, pela chama que és Tu mesmo crepitando em nós.
Que importa que a sede, em grande parte, insatisfeita, (ai dos saciados!).
Que importa se os planos ficarem mais no desejo do que na realidade? Quem sabe mais do que Tu que o êxito independe de nós e só nos pedes o máximo de entrega e de boa vontade?” (Dom Helder Camara) )[1].
Contemplemos hoje o Espírito Divino presente em todo o universo. Testemunhemos que ele atua nas mais diversas expressões espirituais da humanidade (Orixás e Encantados, assim como nos Avatares do Hinduísmo). É ele que descubro na generosidade de tantas pessoas que, sem pertencerem a nenhuma religião, expressam doação de amor às comunidades pobres e compromisso com a transformação do mundo. Que, hoje, esta ventania do amor divino inunde vocês de paz, alegria e amorosidade.
Abraço carinhoso do irmão Marcelo
[1] - DOM HÉLDER CÂMARA, O Deserto é Fértil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 7.