Sexta-feira Santa: a Páscoa da Cruz
A Paixão como Páscoa e Vitória - Jo 18, 1 até 19, 42.
O evangelho de João e a realidade que vivemos hoje no Brasil nos convidam a não separar cruz e ressurreição. Diferentemente dos outros evangelhos, o quarto evangelho, lido nesta tarde de sexta-feira santa, conta a paixão de Jesus como “elevação do Filho do Homem”.
É uma expressão que o evangelista usa várias vezes para se referir à paixão. Sem em nada diminuir a tragédia humana que foi a paixão e o que tudo aquilo significou para Jesus de sofrimento, o quarto evangelho fala da paixão como de um ato no qual Jesus toma sempre a iniciativa de se doar e parece viver aquilo que diz uma das nossas orações eucarísticas: “estando para ser entregue e abraçando livremente a paixão”.
Todos nós sabemos que, historicamente, não é verdade que Jesus tomou sobre si a cruz como se fosse seu destino. Historicamente o obrigaram a carregar a cruz. Mas, João quer mostrar que Jesus assumiu interiormente, de certa forma, livremente a cruz pela missão de testemunhar o reino de Deus, o projeto divino de um mundo novo. Ele tinha dito a Pilatos:
“ - Sim para isso, nasci e para isso vim ao mundo para dar testemunho da verdade”.
E Pilatos perguntou: “- O que é a verdade?”
A verdade é que Deus não é caloteiro. Alguém que promete e não cumpre. A verdade é que mesmo em um Brasil no qual o nome de Deus serve para legitimar as piores causas possíveis, alguém aceita ser condenado e ser morto para dizer: Não. Deus é Amor. Só Amor
A condenação à morte que Jesus viveu é resumo e símbolo de todas as injustiças e violências que ocorrem no mundo. O verbo mais usado nos relatos da paixão é o verbo se entregar, se doar... Mas, sempre com sentidos vários. O evangelho diz que Judas o entregou (isso é o traiu) aos sumo-sacerdotes. Os sacerdotes o entregaram a Pilatos (o poder religioso o levou ao poder político), este o entregou aos soldados e esses o entregaram à morte... E este verbo passivo: foi entregue de repente passa ao ativo: Ele, Jesus, se entregou, doou sua vida por nós...
Sobre a cruz, o que Deus pediu a Jesus foi que, mesmo sofrendo a violência e sendo vítima do desamor, ele continuasse a amar. E Deus não pediu a Jesus o amor a si mesmo, nem o amor ao próprio Deus. Ele pediu que Jesus aceitasse viver em si o amor de Deus pela humanidade, mesmo e principalmente naquela hora pelos homens violentos, responsáveis pela sua morte.
Em uma explicação deste evangelho da paixão, o padre José Comblin, na altura dos seus mais de 80 anos de vida e mais de 50 de teologia, afirmou: “Escrevem por aí: ‘o sangue do Cristo tem poder’. Que poder pode ter o sangue do Cristo? Nenhum. Quem tem poder é o amor do Cristo”.
No mundo a raiz da maior alienação é a incapacidade de amar. E ainda há muitos corações incapazes, verdadeiramente incapazes de amar. O que Jesus fez foi mostrar que o amor só pode ser reinstaurado a partir do não amor. Isso significa concretamente não responder à indiferença, mas suportá-la. Não reagir à hostilidade, mas assumi-la contra si mesmo. Não restituir a bola do mal que lhe é jogada. A morte de Jesus na cruz é o lugar revelador do amor que assume o não amor para reabrir no mundo a possibilidade do amor. É um amor abissal com o qual é restituída ao ser humano, incapaz de amar, a capacidade de amar de forma nova e revolucionária. Amar não apenas como sentimento, mas como postura de vida. Antes, as pessoas eram incapazes de amar, por causa da alienação da qual foram vítimas na história. Agora, o Cristo na cruz nos comunica uma nova capacidade de amar: amor de compaixão que se inclina sobre quem padece, vítimas e algozes, (Muitas vezes, algozes se tornam vítimas e vítimas se fazem algozes). Jesus morreu de amor, ou por amor para despertar em todos nós a relação fraterna. Na cruz, Ele nos dá o amor divino no qual, mesmo morrendo, revela em si a sua liberdade de amar. Por isso, mesmo na morte, o Cristo já aparece como vivo e ressuscitado, porque o amor não morre.
Portanto, o seu amor sobre a cruz não é uma modalidade entre tantas do amor. É diferente. É a explosão de um amor novo e impensável que ele aceitou comparar com a imagem do escravo lavando os pés dos discípulos. O escravo não tem o patrão como amigo. Ele sabe que o patrão o explora e o maltrata. Se Jesus assume a função de escravo é porque assume o peso e a violência que é a própria escravidão. Então a cruz é uma forma totalmente impensável de libertação. Ele liberta assumindo o lugar do escravo. Na cruz aparece o amor que consiste em amar a quem não ama para que quem não ama volte à possibilidade de amar. O amor de Jesus sobre a cruz por quem o rejeita e até o mata é o tipo de amor que é condição necessária para a reinstauração do amor no mundo sem mais amor.
É nesse sentido que o Novo Testamento diz que a morte de Jesus é necessária. É necessária, porque é expressão de um amor que ativa o amor em um amor sem mais amor e sem o qual o amor gratuito e de doação não seria mais possível no mundo.
O escritor judeu Elie Wiesel, prêmio Nobel de literatura, escreveu: “Para a tradição judaica, a morte não é instrumento do qual o ser humano possa se servir para glorificar a Deus. Toda pessoa humana é um fim em si mesma, uma eternidade viva. Ninguém tem o direito de sacrificá-la, nem mesmo Deus. Se Abraão tivesse matado o seu filho, não teria se tornado nosso pai e intercessor. Para o judeu, toda verdade brota da vida e não da morte. Para nós, compreendida como sacrifício, a crucifixão de Jesus representa um passo atrás na história e não um avanço na relação com Deus. No monte Moriá, Isaac permaneceu vivo, marcando o fim de uma era de assassinatos rituais. (...) O Calvário é apresentado pelos cristãos como manifestação de um Deus que gosta de cruz. Durante os séculos, quantas vezes, o Gólgota serviu de pretexto para massacres de pais e filhos, misturados pela espada e pelo fogo, em nome de uma palavra que queria ser de amor” .
Hoje, fazemos memória da cruz de Jesus para nos levantarmos contra todas as cruzes de hoje e para tirar as pessoas e comunidades crucificadas de suas cruzes e testemunhar que a sociedade do desamor não tem a última palavra. Nenhuma cruz é santa. Só o amor salva a nós, à humanidade e à Terra.
A Paixão como Páscoa e Vitória - Jo 18, 1 até 19, 42.
O evangelho de João e a realidade que vivemos hoje no Brasil nos convidam a não separar cruz e ressurreição. Diferentemente dos outros evangelhos, o quarto evangelho, lido nesta tarde de sexta-feira santa, conta a paixão de Jesus como “elevação do Filho do Homem”.
É uma expressão que o evangelista usa várias vezes para se referir à paixão. Sem em nada diminuir a tragédia humana que foi a paixão e o que tudo aquilo significou para Jesus de sofrimento, o quarto evangelho fala da paixão como de um ato no qual Jesus toma sempre a iniciativa de se doar e parece viver aquilo que diz uma das nossas orações eucarísticas: “estando para ser entregue e abraçando livremente a paixão”.
Todos nós sabemos que, historicamente, não é verdade que Jesus tomou sobre si a cruz como se fosse seu destino. Historicamente o obrigaram a carregar a cruz. Mas, João quer mostrar que Jesus assumiu interiormente, de certa forma, livremente a cruz pela missão de testemunhar o reino de Deus, o projeto divino de um mundo novo. Ele tinha dito a Pilatos:
“ - Sim para isso, nasci e para isso vim ao mundo para dar testemunho da verdade”.
E Pilatos perguntou: “- O que é a verdade?”
A verdade é que Deus não é caloteiro. Alguém que promete e não cumpre. A verdade é que mesmo em um Brasil no qual o nome de Deus serve para legitimar as piores causas possíveis, alguém aceita ser condenado e ser morto para dizer: Não. Deus é Amor. Só Amor
A condenação à morte que Jesus viveu é resumo e símbolo de todas as injustiças e violências que ocorrem no mundo. O verbo mais usado nos relatos da paixão é o verbo se entregar, se doar... Mas, sempre com sentidos vários. O evangelho diz que Judas o entregou (isso é o traiu) aos sumo-sacerdotes. Os sacerdotes o entregaram a Pilatos (o poder religioso o levou ao poder político), este o entregou aos soldados e esses o entregaram à morte... E este verbo passivo: foi entregue de repente passa ao ativo: Ele, Jesus, se entregou, doou sua vida por nós...
Sobre a cruz, o que Deus pediu a Jesus foi que, mesmo sofrendo a violência e sendo vítima do desamor, ele continuasse a amar. E Deus não pediu a Jesus o amor a si mesmo, nem o amor ao próprio Deus. Ele pediu que Jesus aceitasse viver em si o amor de Deus pela humanidade, mesmo e principalmente naquela hora pelos homens violentos, responsáveis pela sua morte.
Em uma explicação deste evangelho da paixão, o padre José Comblin, na altura dos seus mais de 80 anos de vida e mais de 50 de teologia, afirmou: “Escrevem por aí: ‘o sangue do Cristo tem poder’. Que poder pode ter o sangue do Cristo? Nenhum. Quem tem poder é o amor do Cristo”.
No mundo a raiz da maior alienação é a incapacidade de amar. E ainda há muitos corações incapazes, verdadeiramente incapazes de amar. O que Jesus fez foi mostrar que o amor só pode ser reinstaurado a partir do não amor. Isso significa concretamente não responder à indiferença, mas suportá-la. Não reagir à hostilidade, mas assumi-la contra si mesmo. Não restituir a bola do mal que lhe é jogada. A morte de Jesus na cruz é o lugar revelador do amor que assume o não amor para reabrir no mundo a possibilidade do amor. É um amor abissal com o qual é restituída ao ser humano, incapaz de amar, a capacidade de amar de forma nova e revolucionária. Amar não apenas como sentimento, mas como postura de vida. Antes, as pessoas eram incapazes de amar, por causa da alienação da qual foram vítimas na história. Agora, o Cristo na cruz nos comunica uma nova capacidade de amar: amor de compaixão que se inclina sobre quem padece, vítimas e algozes, (Muitas vezes, algozes se tornam vítimas e vítimas se fazem algozes). Jesus morreu de amor, ou por amor para despertar em todos nós a relação fraterna. Na cruz, Ele nos dá o amor divino no qual, mesmo morrendo, revela em si a sua liberdade de amar. Por isso, mesmo na morte, o Cristo já aparece como vivo e ressuscitado, porque o amor não morre.
Portanto, o seu amor sobre a cruz não é uma modalidade entre tantas do amor. É diferente. É a explosão de um amor novo e impensável que ele aceitou comparar com a imagem do escravo lavando os pés dos discípulos. O escravo não tem o patrão como amigo. Ele sabe que o patrão o explora e o maltrata. Se Jesus assume a função de escravo é porque assume o peso e a violência que é a própria escravidão. Então a cruz é uma forma totalmente impensável de libertação. Ele liberta assumindo o lugar do escravo. Na cruz aparece o amor que consiste em amar a quem não ama para que quem não ama volte à possibilidade de amar. O amor de Jesus sobre a cruz por quem o rejeita e até o mata é o tipo de amor que é condição necessária para a reinstauração do amor no mundo sem mais amor.
É nesse sentido que o Novo Testamento diz que a morte de Jesus é necessária. É necessária, porque é expressão de um amor que ativa o amor em um amor sem mais amor e sem o qual o amor gratuito e de doação não seria mais possível no mundo.
O escritor judeu Elie Wiesel, prêmio Nobel de literatura, escreveu: “Para a tradição judaica, a morte não é instrumento do qual o ser humano possa se servir para glorificar a Deus. Toda pessoa humana é um fim em si mesma, uma eternidade viva. Ninguém tem o direito de sacrificá-la, nem mesmo Deus. Se Abraão tivesse matado o seu filho, não teria se tornado nosso pai e intercessor. Para o judeu, toda verdade brota da vida e não da morte. Para nós, compreendida como sacrifício, a crucifixão de Jesus representa um passo atrás na história e não um avanço na relação com Deus. No monte Moriá, Isaac permaneceu vivo, marcando o fim de uma era de assassinatos rituais. (...) O Calvário é apresentado pelos cristãos como manifestação de um Deus que gosta de cruz. Durante os séculos, quantas vezes, o Gólgota serviu de pretexto para massacres de pais e filhos, misturados pela espada e pelo fogo, em nome de uma palavra que queria ser de amor” .
Hoje, fazemos memória da cruz de Jesus para nos levantarmos contra todas as cruzes de hoje e para tirar as pessoas e comunidades crucificadas de suas cruzes e testemunhar que a sociedade do desamor não tem a última palavra. Nenhuma cruz é santa. Só o amor salva a nós, à humanidade e à Terra.