9ª Circular da quarentena – 20 de julho 2020
Queridos irmãos e irmãs,
Em várias mensagens de zap, descobri que hoje é o dia da Amizade. Estas datas são meio artificiais e algumas puramente comerciais ou propagandísticas. No entanto, para quem valoriza a amizade como caminho espiritual e projeto de comunhão profunda, é ótimo ter um dia especial para dar graças e celebrar a importância que a amizade pode ter na construção de uma vida. De fato, as pessoas celebram aniversário de nascimento, festejam aniversário de casamento, os padres valorizam a data de sua ordenação, mas não conheço ninguém que faça festa por aniversário de amizade. E penso que minha vida teria tido outro rumo se não fosse algumas amizades que Deus me deu e me dá a graça de viver até agora.
Rubem Alves dizia que se Roberto Carlos cantava: eu quero ter um milhão de amigos, era porque não sabia o que é ser amigo. Amizade é algo especial e raro e ninguém pode ter um milhão e se tivesse não seria amizade. Quando eu era jovem, nos ambientes religiosos se falava mal e com suspeita do que chamavam de “amizades especiais”, como se toda amizade não fosse especial.
Parece que, comumente, as pessoas não distinguem muito um/a amigo/a de um colega ou companheiro, parceiro, camarada. É claro que, às vezes, para mim ou para vocês, uma ou outra pessoa preenche algumas destas diversas funções ou até todas. No entanto, é sempre bom diferenciar.
Na Idade Média, o místico cisterciense Elredo de Rielvaux escreveu belas páginas sobre a espiritualidade da amizade. Deixou claro que a construção de uma amizade pode ser caminho maravilhoso para o aprofundamento da intimidade com Deus. Ele dizia: “Irmão, somos de todo mundo e devemos ser. Amigo, não. Amigo, a gente escolhe”.
Esta diferença é fundamental. Colega a gente se torna por acaso, parceiro ou sócio é coisa de comércio ou de trabalho. Camarada ou companheiro é quem está conosco na caminhada social e política. Amigo a gente escolhe. Elege e aí cada amigo ou amiga se torna único/a. Já nos anos 50, a raposa dizia ao Pequeno Príncipe: “Eu não como trigo e o trigo para mim seria indiferente. Mas, se eu e você nos tornarmos amigos, eu vou passar a gostar do trigo porque as espigas têm a cor dourada dos seus cabelos e aí o trigo vai me lembrar você e ao ver o trigo, eu já serei feliz”.
E concluía uma teologia laical e secularizada da amizade com a famosa afirmação: “A gente se torna eternamente responsável por alguém que a gente cativa”. Nunca encontrei outra definição melhor para a amizade.
Quando estudei a espiritualidade dos monges beneditinos medievais, descobri que em algumas Igrejas locais, nos séculos X e XI, se faziam ritos de juramentos de amizade, assim como se expressava a aliança de vida no ritual do casamento. Ao pensar nisso, me lembro de Jesus no momento forte da santa ceia e na véspera de sua partida dizendo ao grupo de seus discípulos e discípulas: “Eu não chamo vocês de servos e servas. Chamo-os/as de amigos/as, porque revelei a vocês as coisas mais íntimas que recebi do meu Pai...” (Jo 15, 15).
Realmente, é o que posso testemunhar. No decorrer de minha vida, recebi como presente divino amigos e amigas que considero a maior riqueza que a vida me deu. Alguns são amigos/as há mais de 40 e 50 anos. Outros são bem mais recentes e me ajudam viver o diálogo com a juventude. Como Jesus contou na parábola dos trabalhadores da vinha, o Senhor quis pagar aos trabalhadores da última hora o mesmo que receberam aqueles que trabalharam o dia inteiro. Amizade não se mede por tempo. Não tem medida.
Sinto que quando a amizade se vive como projeto de vida e espiritualidade a subversão ao sistema dominante é radical e profunda por uma força misteriosa que só quem sabe a delícia de ser amigo pode compreender. Neste dia da amizade, saúdo com gratidão a cada amigo/a e lhe dedico um poema atribuído ao grande Fernando Pessoa que o teria escrito, há quase cem anos:
Poema do amigo aprendiz
Quero ser o teu amigo.
Nem demais e nem de menos.
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,
Da maneira mais discreta que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.
Sem forçar tua vontade.
Sem falar, quando for hora de calar.
E sem calar, quando for hora de falar.
Nem ausente, nem presente por demais.
Simplesmente, calmamente, ser-te paz.
É bonito ser amigo, (se for assim sempre mais)
Intimidade sem véus que separem
E se estar juntos sem tomar espaço.
mas confesso é tão difícil aprender!
E por isso eu te suplico paciência.
Vou encher este teu rosto de lembranças,
Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias…
Deus abençoe a cada um/ uma de vocês.
Com carinho, o irmão Marcelo