Quando a profecia invade o templo
Desde séculos antigos, as Igrejas orientais dedicam o 40º dia depois do Natal (2 de fevereiro) à memória da Apresentação de Jesus no templo e chamam essa festa: Hipapanté: o encontro do Senhor com o seu povo. Para o Judaísmo da época de Jesus, isso se deu no templo.
Em seu livro "A queda do céu", o Xamã Davi Kopenawa conta: “Para a espiritualidade ianomami, o encontro do Espírito Divino com o povo indígena se dá quando os Xapuri, espíritos da floresta, vêm dançar no meio da mata para proteger os seres vivos ameaçados e se comunicar com os Xamãs.
No Oriente, hinduístas, budistas e jainistas celebram em outubro ou novembro a festa de Diwali, ou também Deepavali que ao recordar que Sri Krishna venceu e destruiu Narakasura, celebra a destruição das forças do mal e a vitória da luz divina. Por isso, é festa das luzes.
No mundo antigo, antes do Cristianismo dominar o Ocidente, havia neste 2 de fevereiro, ritos de exorcismos das energias ruins do inverno. As pessoas saiam com velas nas mãos pelos campos expulsando os espíritos das trevas e do calor do fogo espantando o frio. Assim nasceu o costume das procissões de vela neste dia e o costume de celebrar Nossa Senhora da Luz ou como se costuma dizer em Juazeiro do Norte: A Mãe de Deus das Candeias.
No Cristianismo, a celebração dessa memória da apresentação de Jesus no templo nos faz perguntar: Como se dá esse mergulho do Divino em nós, na nossa vida, hoje?
Conforme o Evangelho lido nessa festa (Lucas 2, 22- 40), na hora em que Jesus é apresentado ao templo, ele passa a fazer parte do seu povo. Para os pais (Maria e José) que levam o menino ao templo, a apresentação da criança é como se fosse em nossa sociedade o registro civil que assegura a pertença da criança como cidadã daquele povo. No caso de Maria e José, eles são tão pobres que não podem oferecer o sacrifício “normal”, previsto na lei e ofertam aquilo que a lei diz que apenas as pessoas mais pobres e indigentes podem oferecer: um casal de rolinhas (Lv 12, 8).
O evangelho de Lucas mistura dois ritos judaicos:
1º - a purificação da mãe
e 2º - a apresentação do filho.
Conforme a lei, no caso do primeiro filho de um casal, eles deveriam fazer o “resgate do primogênito”, sacrifício pelo qual a família pedia ao Senhor para ficarem com o menino e cuidarem dele como pai e mãe, mas, ao mesmo tempo, prometiam que o menino (primogênito da família) seria sempre consagrado a Deus (Cf. Ex 13, 2. 12. 15).
A comunidade de Lucas não faz nenhuma alusão a esse rito do resgate do primogênito. Talvez porque era um rito de pouco interesse para os não judeus, aos quais a comunidade de Lucas se dirige. Antigos pastores da Igreja interpretaram que o evangelho não fala desse rito do resgate do menino para deixar claro: desde o início de sua vida, o menino já pertencia mesmo a seu Pai do céu. Ele é apenas apresentado, não para se purificar e sim para purificar o templo, ou seja para transformar a religião. E como seria essa transformação?
O evangelho conta a apresentação de Jesus no templo, mas no lugar de falar dos sacerdotes que o receberam, prefere destacar duas figuras menos importantes para o templo: dois velhos, um homem e uma mulher que exerciam não o sacerdócio, mas a profecia.
No tempo em que Lucas escreveu o evangelho (anos 80), não existia mais o templo de Jerusalém. Os romanos o tinham destruído. Por causa desse desrespeito trágico à vida e à cultura dos judeus, Lucas sempre mostra o templo de forma positiva. Diferentemente de Marcos e João. No entanto, mostra que, no templo, o importante não é o culto sacerdotal. É o exercício da profecia (Isaías e Amós foram profetas que exerceram a profecia no ambiente de templos). Assim, até o templo pode ser lugar da profecia. Jesus que antes já fora reconhecido pelos pobres (pastores), agora é reconhecido pelos profetas.
Atualmente, na Igreja Católica e Igrejas mais históricas que valorizam o templo e a ordenação de ministros que são como os sacerdotes do templo, esse evangelho provoca a fazermos dos ministérios ordenados, serviços proféticos.
Esse evangelho sublinha que a profecia tem um jeito masculino com Simeão e um estilo feminino com Ana. É a partir daí que Simeão profetiza sobre Jesus: “luz para os gentios, salvação para todos os povos e glória para Israel”. É um casal simbólico: Simeão e Ana. Simeão profetiza que Israel pode alegrar-se porque deu Jesus à humanidade, mas este será luz para todos os povos e não só para uma determinada religião. Esse casal de profetas representa também a importância dos mais velhos na comunidade. Atualmente, nesse nosso mundo dominado pela produção e pelo dinheiro, muitas vezes, as pessoas mais velhas são marginalizadas, ao contrário, de caminhos espirituais como as religiões afro-brasileiras e indígenas, nas quais os mais velhos têm um papel preponderante.
Muitas vezes, as pessoas perguntam: - E essa história de que Jesus vai ser sinal de contradição e uma espada de dor... Ele estava falando da cruz? Sim e não. Sim porque concretamente há uma referência à morte de Jesus (uma espada de dor traspassará a tua alma). Mas, penso que, mais profundamente, se trata da própria verdade de Deus (e da vida), manifestada por Jesus. Deus sempre pede de nós uma escolha: um sim ou um não. É uma decisão que sempre se traduz em um sim ou um não à vida. Conforme o livro sagrado da mística judaica, o Zohar, o símbolo da espada traduz o Nome de Deus (YHWH). Nesse caso, poderíamos entender que a revelação de Deus que Jesus traz atravessa a vida de Maria tão intimamente que não a livra da exigência de crer e escolher. Essa me parece uma interpretação mais ligada ao contexto e às outras referencias que em Lucas dizem respeito a Maria.
Na primeira versão do meu livro “Conversa com o evangelho de Lucas”, a querida e saudosa irmã Agostinha comentou:
- A velha Ana é símbolo dessa espera feminina do messias: é mulher profetisa, anciã e viúva. No cristianismo primitivo, a categoria das viúvas era muito valorizada na comunidade (Cf 1 Tm 5, 5- 9). A mulher podia ser profetisa, isto é, falar em público na Igreja e ter uma função ativa na comunidade. Hoje, muitos grupos de base são coordenados por mulheres, mas em algumas Igrejas tradicionais, o ministério feminino ainda é pouco reconhecido e valorizado.
Esperamos que na Igreja Católica, esse ministério feminino seja mais valorizado, não apenas com a abertura para as ordenações de mulheres. É importante mais do que isso. É urgente encontrarmos formas femininas de ministérios ordenados e centrais para as comunidades de Deus.
Em comum com as comunidades negras, cantamos junto com Dorival Caymmi o ja clássico Dois de Fevereiro: