Quando a cidadania exige desobediência civil
Governos autoritários e instituições militares valorizam a hierarquia e a submissão aos superiores. Igrejas e religiões falam da obediência como virtude necessária para se viver a espiritualidade. No entanto, a ONU e organismos internacionais, assim como a Constituição de diversos países reconhecem o direito a desobedecer ordens injustas.
Nesta semana, se completam cem anos do dia 01 de agosto de 1920, quando, na Índia, o Mahatma Gandhi lançou a Campanha de Desobediência Civil. Esta campanha ensinava o povo hindu a desobedecer às autoridades da Inglaterra. Foi o início de todo o processo que culminou com a independência da Índia. Do mesmo modo, nos Estados Unidos do início dos anos 1960, a partir da Desobediência Civil, Martin Luther King liderou a luta pacífica pela igualdade racial, ao menos no plano legal. Ainda nos nossos dias, infelizmente, policiais continuam a matar, de preferência, homens negros. Mais infelizmente ainda, nos Estados Unidos, até as Igrejas cristãs se dividem em Igrejas de brancos e Igrejas de negros. No entanto, perante a lei se conquistou a igualdade racial.
A desobediência civil tem sido importante arma pacífica contra estados que cometem injustiças e violações aos direitos humanos. Em Israel, jovens recrutados ao serviço militar obrigatório se negam a expulsar palestinos dos territórios que lhes pertenciam e a explodir suas casas. Na Europa, jovens conquistaram o direito de prestar serviço civil a comunidades carentes no lugar de fazer carreira militar. Nos Estados Unidos, jovens se negam a ir fazer guerras e praticar violências em outros países do mundo. Os meios de comunicação não mostram e os governos não divulgam, mas todos invocam um direito individual, assegurado pela ONU: o direito de objeção de consciência. A objeção de consciência é a atitude de quem, por convicção religiosa, social ou política, se nega a pegar em armas e a participar de guerras ou atos violentos. Em vários países, a objeção de consciência é direito civil, reconhecido por lei. No Brasil, a Constituição garante aos jovens brasileiros o direito de fazer um serviço civil no lugar da prestação ao serviço militar obrigatório. Entretanto, as leis complementares não foram sancionadas. Por isso, este direito ainda não se pode exercer e poucos brasileiros têm consciência disso.
A espiritualidade ecumênica compreende a obediência como abertura pessoal e livre que leva as pessoas a escutar interiormente o outro e a acolher positivamente a palavra e as propostas de quem assume tarefa de acompanhá-lo e orientá-lo. No entanto, esta obediência deve ser adulta e responsável. Tem de se basear na liberdade do coração. Só se realiza através do diálogo franco e aberto. Esta obediência crítica e amorosa propõe a colaboração mútua no lugar da competição e contém um elemento subversivo diante da mesquinhez do mundo.
A ciência e a arte de viver têm progredido mais por conta das pessoas que ousam desafiar as leis e inovar os costumes do que pela ação das que simplesmente seguem caminhos convencionais. Homens e mulheres, admirados no mundo inteiro, alguns até premiados com o Nobel da Paz, foram ou ainda são, em seus países, considerados como rebeldes e desobedientes. Para os budistas tibetanos, Sua Santidade, o Dalai Lama, é a 14a reencarnação do Buda da Compaixão, mas, para o governo chinês, é um dissidente, desobediente às leis. O prêmio Nobel da Paz foi dado a dois latino-americanos ilustres: Rigoberta Menchu que viveu anos sem poder voltar à Guatemala para não ser morta e Adolfo Perez Esquivel que, durante anos, era constantemente ameaçado de prisão na Argentina. No Brasil da ditadura militar, Dom Hélder Câmara, era escutado no mundo inteiro, enquanto, em nosso país, o governo proibia que os meios de comunicação divulgassem o seu nome. No passado, Gandhi e Martin-Luther King foram presos e condenados como desobedientes à lei. Para os cristãos, os mártires são testemunhas da fé. Muitos foram condenados à morte por se negar a obedecer a autoridades injustas. Outros, por objeção de consciência ao serviço militar. Do ponto de vista da fé, são santos, mas a sociedade da época os condenou como desrespeitadores das leis e até criminosos.
Objetar é mais do que estar em desacordo. É opor-se a cumprir uma lei que fere a consciência. A violência, mesmo se é institucional, nunca será capaz de construir um mundo de paz e justiça.
Se a objeção de consciência é direito de toda pessoa diante do poder social e político, com mais razão ainda, as religiões e Igrejas deveriam reconhecer o direito à dissidência e à objeção de consciência diante de um poder religioso autoritário, ou cúmplice de um governo violento e genocida. Conforme a Bíblia, quando os sacerdotes de Jerusalém proibiram os apóstolos a falar em nome de Jesus, estes responderam: “Entre obedecer a Deus e aos homens, é melhor obedecer a Deus”(At 5, 29).
A negação do direito da desobediência civil e mesmo espiritual abre a porta ao fundamentalismo religioso, hoje, responsável por tantos atos de intolerância e mesmo de violência. Há cristãos que apoiam governos irresponsáveis que propagam notícias falsas e estimulam ódio e violência. São adeptos de uma religião civil que utiliza o evangelho em seu beneficio, mas nada têm a ver com Jesus. Na Bíblia, a fé só pode ser vivida na liberdade tanto interior como social. Paulo escreveu aos coríntios: “Onde estiver o Espírito do Senhor, aí haverá liberdade” (2 Cor 3, 17). E aos gálatas: “Foi para que sejamos livres que Cristo nos libertou. Vocês não devem aceitar, por nenhum pretexto, voltar à situação de não liberdade” (Gl 5, 1. 13).