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A graça para além da lei

Nesse 5º domingo da Quaresma (ano C), lemos no evangelho o encontro de Jesus com a mulher que, como diz o evangelho, foi surpreendida em flagrante de adultério. (João 8, 1 - 11). Conforme João, a cena se passa no contexto da festa das Tendas, como conta o capítulo 7 do qual este é continuação. O espaço é o templo de Jerusalém e acontece de manhã bem cedo, de madrugada. O fato de que a cena acontece no templo é muito significativa. Este evangelho mostra que o templo de Deus que deveria ser o local da renovação da aliança do Amor Divino com o seu povo e sinal da presença divina para proteger os seus filhos e filhas se tornou local de julgamento e condenação das pessoas consideradas pecadoras.

Na época de Jesus, os escribas e fariseus eram considerados os sábios da comunidade de Israel e se colocavam como guardiões da lei. Conforme essa lei, o adultério era considerado pecado grave (Lv 20). O texto ressalta que os religiosos do templo querem a todo custo condenar Jesus  e fazem isso não com armas e instrumentos do mal e sim se servem do que há de mais santo: a própria lei considerada como revelada por Deus.

O texto deixa claro que os doutores da lei pouco se importavam com a mulher que eles apanharam praticando adultério e trouxeram a Jesus. Ela servia apenas  como arma para que os religiosos pudessem pegar Jesus e o acusar perante o sinédrio. Se ele a defendesse, eles poderiam acusá-lo de  ser contra a lei de Moisés. Os religiosos usam a lei de Deus para matar a mulher e, ao mesmo tempo, para acusar Jesus como desrespeitador da lei.

(Infelizmente, essa distorção terrível da fé e da religião acontece até hoje, mesmo em nossas Igrejas).

A lei de Deus se insere nas culturas humanas e por isso assume costumes humanos que na época e hoje nem sempre são os mais abertos. A sentença de apedrejar uma mulher que cometesse adultério era para salvar a instituição do casamento. Mas, a mesma lei convivia com a cultura segundo a qual o homem podia ter várias mulheres. E pela lei do levirato, a mulher deveria ser dada ao parente do marido morto como se fosse uma propriedade que ele herdou.

Como está escrito, o evangelho não discute a culpa da mulher. Já parte do princípio: ela é culpada. Ou Jesus concordava que, de acordo com a lei, apedrejassem a mulher ou se posicionava contra a lei de Deus.

Jesus não entra no jogo dos adversários. Não responde imediatamente. Inclina-se e começa a escrever no chão. É uma atitude estranha. Nos quatro evangelhos, é a única vez que Jesus age assim. Ele se nega a se concentrar sobre o mal. Enquanto aqueles homens viam ali uma mulher adúltera, para Jesus, ela era apenas e sempre uma pessoa humana, portanto, filha amada de Deus. Na Idade Média, o Mestre Eckhart, um dos mais importantes teólogos ocidentais, ensinava: “Deus não olha o mal. Não se interessa por nossos pecados”. Jesus quer outro modo de relação entre nós e Deus. Por isso, ele reage dizendo: “Está bem. Então, quem de vocês não tiver pecado, atire a primeira pedra”.

O que Jesus fez foi revelar a hipocrisia profunda que havia na atitude dos escribas e fariseus que condenavam a mulher. Aqueles homens sábios e religiosos foram até honestos. Saíram todos, um por um, como diz o evangelho:  a começar pelos mais velhos. Hoje, em dia, há religiosos que, em nome da lei de Deus, condenam as pessoas que eles julgam pelas aparências. E nem sempre têm a honestidade de “sair”, isso é, de mudar de postura, quando fica claro que não teriam moral para condenar ninguém.

Será que esse mundo de denúncias morais que desabam sobre o clero e a hierarquia tornarão toda a nossa Igreja (clero e leigos) mais humilde, mais misericordiosa com os que são considerados pecadores. Ou será que os doutores da lei continuarão a esconder suas fraquezas pessoais sob a máscara do poder e do poder divinizado em nome de Deus?

No caso contado nesse evangelho, Jesus se encontra sozinho, ele e a mulher. Ela confirma que ninguém a condenou. Jesus simplesmente lhe diz: Vai em paz e não peques mais.

Na época de Jesus, as mulheres eram vistas como fonte de impureza e ocasião de pecado e sedução. Os grupos judaicos quando construíam as sinagogas faziam uma grade e era por trás dessa grade que, nos sábados, as mulheres assistiam o culto. Jesus é diferente. Vivia rodeado de mulheres. Maria Madalena. As irmãs Marta e Maria de Betânia, várias discípulas que o acompanharam desde a Galileia até Jerusalém, sem falar nas  mulheres doentes e até prostitutas de aldeia que se aproximavam dele. Nenhum outro profeta daquele tempo era assim. Jesus olha as mulheres com olhos diferentes. Ele as trata com ternura. Defende sua dignidade. Até as acolhe como discípulas. Nas poucas vezes que o 4º evangelho fala de mulheres, elas são sempre sinais e profecias da ternura divina. As cenas mais afetuosas do evangelho são aquelas nas quais aparece uma mulher. 

Temos que sonhar com uma Igreja mais justa e mais igualitária em relação à mulher. Não se trata apenas de abrir os ministérios para as mulheres e sim de voltar ao evangelho e acabar com o sistema de duas classes na Igreja, os ordenados e os/as não ordenados/as. Só retomando a igualdade do discipulado de Jesus e a autonomia das comunidades para celebrar a ceia e os sinais do amor divino que superaremos a marginalização estrutural da mulher na Igreja. A Igreja precisa ser exemplo de novo modo de ser no mundo para que consigamos vencer a violência doméstica e tantas situações nas quais a mulher é vítima. Olhar as mulheres e todas as pessoas marginalizadas como Jesus olhou supõe a Educação como processo de cuidado, como propõe a Campanha da Fraternidade 2022 que tem como lema bíblico: "Fala com sabedoria, ensina com amor". 

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Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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