Desde que a justiça liberou visitas religiosas, fui o segundo a ter graça de visitar o presidente Lula em sua prisão. (Quem abriu a fila foi Leonardo Boff na segunda-feira passada). Eram exatamente 16 horas quando cheguei na dependência da Polícia Federal onde o presidente está aprisionado. Encontrei-o sentado na mesa devorando alguns livros, entre os quais vários de espiritualidade, levados por Leonardo. Cumprimentou-me. Entreguei as muitas cartas e mensagens que levei, algumas com fotografias. (Mensagem do Seminário do Fé e Política, de um núcleo do Congresso do Povo na periferia do Recife, da ASA (Articulação do Semi-árido de Pernambuco) e de muitos amigos e amigas que mandaram mensagens. Ele olhou uma a uma com atenção e curiosidade. E depois concluiu: - De saúde, estou bem, sereno e firme no que é meu projeto de vida que é servir ao povo brasileiro como atualmente tenho consciência de que eu posso e devo. Você veio me trazer um apoio espiritual. E o que eu preciso é como lidar cada dia com uma indignação imensa contra os bandidos responsáveis por essa armação política da qual sou vítima e ao mesmo tempo sem dar lugar ao ódio.
Respondi que, nos tempos do Nazismo, Etty
Hillesum, jovem judia, condenada à
morte, esperava a hora da execução em um campo de concentração. E, naquela
situação, ela escreveu em seu diário: “Eles
podem roubar tudo de nós, menos nossa humanidade. Nunca poderemos permitir que
eles façam de nós cópias de si mesmos, prisioneiros do ódio e da intolerância”.
Vi que ele me escutava com atenção e
acolhida. E ele começou a me contar a história de sua infância. Contou como,
depois de se separar do marido, dona Lindu saiu do sertão de Pernambuco em um
pau de arara com todos os filhos, dos quais ele (Lula) com cinco anos e uma
menina com dois. Lembrou que quando era menino, por um tempo, ajudava o tio em
uma venda. E queria provar um chiclete americano que tinha aparecido naqueles
anos. Assim como na feira, queria experimentar uma maçã argentina que nunca
havia provado. No entanto, nunca provou nem uma coisa nem outra para não envergonhar
a mãe. E aí ele prosseguia com lágrimas nos olhos: Agora esses moleques vêm me
chamar de ladrão. Eu passei oito anos na presidência. Nunca me permiti ir com
Marisa a um restaurante de luxo, nunca fiz visitas de diplomacia na casa de
ninguém... Fiquei ali trabalhando sem parar quase noite e dia... E agora, os
caras me tratam dessa maneira...
Eu também estava emocionado. O que pude responder foi: - O senhor sabe que as pessoas conscientes, o povo organizado em movimentos sociais no Brasil inteiro acreditam na sua inocência e sofrem com a injustiça que lhe fizeram. Na Bíblia, há uma figura que se chama o Servo Sofredor de Deus que se torna instrumento de libertação de todos a partir do seu sofrimento pessoal. Penso que o senhor encarna hoje, no Brasil essa missão.
Comecei a falar da situação da região
onde ele nasceu e lhe dei a notícia de que a ASA (Articulação do Semi-árido) e
outros organismos sociais estão planejando um grande evento para o dia 13 de
junho em Caetés, a cidadezinha natal dele. Chamar-se-á “ Caravana do Semi-árido
pela Vida e pela Democracia” (contra a
Fome – atualmente de novo presente na região – e por Lula livre). A partir
daquela manifestação, três ônibus sairão em uma caravana de Caetés a Curitiba
para ir conversando com a população por cada dia por onde passará até chegar em
Curitiba e fazer uma festa nordestina de São João, em frente à Polícia Federal.
Ele riu, se interessou e me pediu que
gravasse um pen-drive com músicas de cantores de Pernambuco, dos quais ele
gosta. Música de qualidade e que não estão no circuito comercial. Vergonha.
Nunca tinha ouvido falar de nenhum e nem onde encontrar. Ele me disse que me mandaria
os nomes pelo advogado e eu prometi que gravaria.
Distenção feita, ele quis me mostrar uma
fotografia na parede na qual ele juntou os netos. Explicou quem é cada um/uma e
a sua bisneta de dois anos (como parece com dona Marisa, meu Deus!). Começou a
falar mais da família e especialmente lembrou um irmão que está com câncer. Isso
o fez lembrar que quando Dona Lindu faleceu, ele estava na prisão e o Coronel
Tuma permitiu que ele saísse da prisão e com dois guardas fosse ao sepultamento
da mãe. No cemitério, havia uma pequena multidão de companheiros que não
queriam deixar que ele voltasse preso. Ele teve de sair do carro da polícia e
falar com eles pedindo para que deixassem que ele cumprisse o que tinha sido
acertado. E assim voltou à prisão.
A hora da visita se passou rápido. Perguntei
que recado ele queria mandar para a Vigília do Acampamento e para as pessoas às
quais estou ligado. Ele respondeu:
- Diga que estou sereno, embora indignado com a injustiça sofrida. Mas,
se eu desistir da campanha, de certa forma estou reconhecendo que tenho culpa.
Nunca farei isso. Vou até o fim. Creio que na realidade atual brasileira, tenho
condições de ajudar o Brasil a voltar a ser um país mais justo e a lutar para
que, juntos, construamos um mundo no qual todos tenham direitos iguais.
Para concluir a visita, propus ler um
texto do evangelho e ele aceitou. Li o evangelho do próximo domingo – festa de
Pentecostes e apliquei a ele – os discípulos que estão em uma sala fechada,
Jesus que se deixa ver, mesmo para além das paredes que fechavam a sala. E deu
aos seus a paz, a alegria e a capacidade de perdoar no sentido de discernir o
julgamento de Deus sobre o mundo. E soprando sobre eles lhes deu a vida nova do
Espírito. Segurei em suas mãos e disse: Creio profundamente que isso se renova
hoje com você. Vi que ele estava emocionado. Eu também fiquei. Abri o pequeno
estojo e lhe mostrei a hóstia consagrada que lhe tinha trazido da eucaristia
celebrada na véspera. Oramos juntos e de mãos dadas o Pai Nosso. Eu tinha
trazido duas hóstias. Eu lhe dei a comunhão e ele me deu também para ser
verdadeiramente comunhão. Em um instante, eram vocês todos/as que estavam ali
naquele momento celebrativo e eu disse a
ele: “Como uma alma só, uma espécie de espírito coletivo, muita gente – muitos companheiros
e companheiras estão aqui conosco e estão em comunhão e essa comunhão
eucarística representa isso. Eu lhe dei a bênção e pedi a bênção dele para
todos vocês. Foi isso.
Quando o policial que me foi buscar
me levou para fora e a porta se fechou atrás de mim, me deu a sensação profunda
de algo diferente. Senti como se eu tivesse saído de um espaço de liberdade
espiritual e tivesse entrando na cela engradeada do mundo que queremos
transformar. Que o Espírito de Deus que a celebração desses dias invoca sobre
nós e sobre o mundo nos mergulhe no amor e nos dê a liberdade interior para
irmos além de todas essas grades que aprisionam o mundo.