XXVII Domingo Comum: Mt 21, 33- 43.
Em 1981, época da ditadura militar, em São Geraldo do Araguaia, pequena cidade nas margens do rio, a polícia tinha prendido os dois padres franceses, Francisco Guriou e Aristides Camio e alguns lavradores. No final daquela tarde, as pessoas viram baixar do céu um helicóptero e dele sair o famoso Coronel Curió, figura conhecida pelo autoritarismo e violência a favor do latifúndio. Este mandou abrir a Igreja, tocar o sino e reunir a população. O coronel coordenou o culto. Leu essa parábola dos vinhateiros assassinos e interpretou: “Ao prender padres e lavradores, estamos cumprindo o que, nessa parábola, Jesus disse que é o modo de Deus agir. Ele está do lado dos proprietários e castiga lavradores que querem se apoderar da terra que Deus deu aos fazendeiros ricos”.
Evidentemente, qualquer pessoa de bom senso rejeita essa interpretação grosseira e fundamentalista da parábola. Conforme a exegese, o senhor dessa história não é um capitalista que mora na cidade e tem uma terra no campo. Conforme a parábola, ele trabalha pessoalmente na sua vinha. Ele mesmo a rodeia com uma cerca e constrói uma torre para protegê-la dos ladrões. É a mesma imagem usada em Isaías 5: “Meu amigo tinha uma vinha, ele mesmo a plantou, cercou com uma cerca”.
No primeiro testamento, a vinha era o povo de Israel. Jesus amplia a alegoria de Isaías e do salmo 80. Agora, a imagem da vinha não se refere mais apenas ao povo bíblico, mas ao reinado divino no mundo. A vinha de Deus é o projeto de um mundo organizado conforme o projeto divino da aliança de toda a humanidade, na base da paz e da justiça. Para Jesus, os dirigentes do templo que se centram no religioso seriam como os lavradores que mataram os enviados. O proprietário ama a vinha. Jeremias já havia dito: “Desde que os pais de vocês saíram do Egito até hoje, vos enviei os meus servos, os profetas. Mas, vocês não quiseram escutá-los”(Jr 7, 25- 26).
É certo que Jesus tirava suas parábolas de fatos ocorridos na época. A história contada na parábola retrata a situação social e econômica da época de Jesus. O país estava dividido em grandes latifúndios e os proprietários eram, em geral, estrangeiros ricos. Assim, era compreensível que os lavradores locais sentissem ódio e revolta contra os proprietários usurpadores da terra que Deus tinha dado para o seu povo. Pela legislação judaica antiga, se o proprietário da terra morresse ou desaparecesse e não tivesse herdeiros, a terra se tornava automática e legalmente propriedade dos que nela trabalham. Isso explica porque, na parábola contada por Jesus, os lavradores, pensando que o filho tinha herdado a terra (portanto, o pai tinha morrido), decidem matar o filho. Se o filho morresse, eles poderiam ficar legalmente como proprietários. Provavelmente, Jesus colheu essa história de um fato ocorrido na época. Ele parece ter contado essa história para mostrar que a violência não resolve os problemas da justiça. No entanto, a comunidade do evangelho de Mateus a retomou e fez dela uma alegoria sobre a responsabilidade que os chefes religiosos do Judaísmo tiveram na condenação que Jesus sofreu e na sua morte.
De acordo com o evangelho, os sacerdotes e religiosos do templo reagiram mal à parábola, porque se sentiram insultados e acusados até de assassinato. Essa história também nos incomoda, porque talvez ainda reagimos à sua profecia, por demais crítica à religião e ao poder religioso.
De fato, Jesus parece generalizar. Não faz distinções entre religiosos bons e religiosos maus. Chama todos os sacerdotes e religiosos do templo de aproveitadores que tomam para si a vinha que é do Senhor. Acusa todos de serem responsáveis pela morte dos profetas, enviados/as de Deus. De um lado, isso é comum na linguagem dos profetas. Do outro, é claro que, quando queremos atualizar a parábola, precisamos compreender que Jesus visa denunciar um tipo de religião baseada no culto e na lei.
Imagine alguém afirmar que todos os pastores que praticam Teologia da Prosperidade são ladrões e, ao menos, corresponsáveis pela miséria do povo oprimido. De fato, ao menos no Brasil, há muitos grupos religiosos, dioceses e paróquias católicas que mantêm um estilo de fé mais devocional, espiritualista e religioso. Em sua maioria, esses religiosos estão mais ligados à classe alta e média. Têm poucos contatos com os pobres.
Na parábola anterior, lida no domingo passado (Mt 21, 28 – 32), o evangelho nos dizia que a vinha é uma só: o projeto divino no mundo. Dizia que os dois filhos recebem do Pai o mesmo mandato: vão trabalhar na minha vinha. E a vinha do Pai é o mundo. É a vida e não a religião. Esta parábola de hoje acusa os religiosos de terem se apossado da vinha de Deus, como se fosse propriedade deles e não do Pai. O evangelho denuncia: eles provocam a morte do Cristo, não mais no seu corpo físico, mas no corpo social dos pobres e pequeninos. “O que fizestes a um desses pequeninos, foi a mim que fizestes” (Mt 25, 33...).
No Brasil, muitos/as religiosos/as sustentam uma Política responsável pela exploração de lavradores, extermínio dos povos indígenas, massacre da juventude negra nas periferias das cidades. Além disso, esse tipo de Política provoca a destruição da Amazônia e dos biomas em todo o Brasil. É fundamental libertar a fé cristã de uma sacralidade que legitima a indiferença social mascarada de religiosidade. Se os cultos não ajudam as pessoas a serem mais humanas e mais “famintas e sedentas de justiça”, não são evangélicos e sim farisaicos e hipócritas. Se, nas paróquias e dioceses, a eucaristia é celebrada como se fosse manifestação de poder sacral e mantém estilo de cerimônia medieval nada têm a ver com a ceia que Jesus nos mandou fazer em sua memória. Novenas, terços e bênçãos do Santíssimo Sacramento com ostensórios dourados podem parecer espirituais, mas nada têm a ver com o evangelho do profeta Jesus de Nazaré que mandou seus discípulos cumprirem sua missão sem levar túnicas, nem bolsas e aonde chegarem, a única mensagem deveria ser a Paz que o reinado divino deve trazer. Ainda hoje, muitos ministros de Igreja fazem o que aqueles vinhateiros da parábola fizeram ao se apossar da vinha do Senhor. E Jesus conclui a parábola dizendo, não que a vinha será destruída, mas que será tirada desses maus administradores e será dada a outros que possam torná-la fecunda.
A vinha de Deus é o mundo e, portanto, os administradores novos aos quais Deus confia a sua vinha não é somente uma Igreja. É a humanidade renovada e crítica que trabalha por um mundo novo possível. Como cristãos e cristãs, somos chamados/a a colaborar com essa profecia que vai além das Igrejas, mas da qual nós devemos participar e incentivar.