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A liturgia na vida e a vida na liturgia

Quinta-feira santa da Ceia do Senhor – Jo 13, 1-15

                                                              A Liturgia da Vida e a Vida na Liturgia

             Nesta noite, no calendário litúrgico das Igrejas históricas, começam as celebrações pascais, com a recordação da última ceia de Jesus. A tradição antiga chamava a celebração da noite da quinta-feira santa “a Páscoa da Ceia” por lembrar a última ceia, na qual, de acordo com o evangelho, Jesus institui a Eucaristia. 

Muitas religiões propõem o alimento e bebida como sinais e instrumentos da comunhão com o Divino. No Brasil, as mais antigas tradições espirituais parecem ter sido o culto da Jurema Sagrada, vivido por quase todos os povos indígenas do Nordeste e os cultos com plantas de poder como a Ayauasca e o Santo Daime na região amazônica. Até hoje, na Amazônia, mais de 72 grupos indígenas fazem uso de plantas como a Ayauasca e plantas semelhantes que alguns consideram alucionógenas e os devotos destes cultos consideram enteógenas, isso é, substâncias que nos fazem mergulhar na intimidade do Mistério Divino. 

Em nossos dias, Edward Guimarães, teólogo leigo católico e professor de Teologia em Belo Horizonte, a partir de sua experiência, compara o uso do Santo Daime com a espiritualidade da eucaristia. Não se trata de discutir racionalmente semelhanças e diferenças entre tradições que, mesmo cada uma guardando a sua singularidade, têm ambas o seu núcleo mais profundo na profunda consciência da Presença Divina no mais íntimo do nosso ser, da comunidade e do universo.   É na alegria desta comunhão que ultrapassa fronteiras culturais e religiosas que meditamos sobre a Páscoa da Ceia.   

Nesta noite, na celebração da Liturgia Latina, temos a leitura do Êxodo sobre como, no antigo Egito, Deus ordenou que se fizesse a ceia pascal dos hebreus (Ex 12). Ouvimos também o primeiro relato cristão da eucaristia (1 Cor 11) e, enfim, o evangelho que inicia o relato pascal contando que, na última ceia, Jesus lavou os pés dos discípulos e discípulas (João 13, 1- 15). 

            Depois da leitura, é proposto o rito do lava-pés, que foi reintroduzido na liturgia desta noite, a partir da Reforma Litúrgica do Concílio Vaticano II. Para as pessoas mais inseridas nas comunidades e que têm maior sensibilidade e preocupação em ligar Liturgia e Vida, é um grande desafio restituir a esse gesto sua veracidade e não fazê-lo apenas como um teatro que até destoa com o triunfalismo e pompa que ainda vigora em algumas celebrações de catedrais e de paróquias. 

              O escândalo da separação entre a liturgia e a realidade social se encontra vigente em muitos ambientes eclesiásticos, mas é também muito antiga. Já existia no final do século I, quando a comunidade do Discípulo Amado escreveu o quarto evangelho. É possível que, para romper com esse divórcio entre celebração e vida que já tomava conta da Igreja, o quarto evangelho, em sua narrativa da última ceia de Jesus, evita qualquer alusão à instituição da eucaristia. Substitui o relato da eucaristia pelo episódio do lava-pés. Isso deveria, no mínimo, nos provocar e questionar, hoje, sobre como ligamos nossas celebrações e o efetivo serviço aos irmãos e irmãs. 

            É verdade que, antes, no capítulo 6, o quarto evangelho traz um discurso de Jesus sobre o pão da vida. Mas, também essas palavras de Jesus contêm forte crítica a um sacramentalismo que se prende ao sinal e não vai até a adesão a Jesus e ao seu projeto. Ali, Jesus tinha dito: Vocês me procuram porque comeram dos pães e ficaram saciados. E em outro momento: Precisam ir além dos sinais (dos sacramentos). “Eu sou o pão da vida” pode ser lido como “O pão da vida sou Eu, a minha pessoa, a minha palavra, o projeto divino que anuncio e não um rito ao qual vocês se prendem e não aceitam ir além dele. É preciso penetrar na realidade que o sinal (o rito) deve indicar, ou seja, a partilha e a comunhão na luta pela vida”. 

Vários registros históricos atestam que nos tempos da primeira e segunda geração cristã, os discípulos e discípulas de Jesus se uniram em comunidades de entreajuda e solidariedade. Por isso, tomaram das cidades gregas o nome das assembleias de seus cidadãos: Igrejas. A diferença com as igrejas (assembleias) do império era que, nas assembleias cristãs, todos/todas eram tratados como iguais e procuravam ter tudo em comum (At 2, 32 ss). Celebravam e partilhavam a  ceia de Jesus como memorial da morte e ressurreição de Jesus. O modo de fazer esse memorial não era um rito sacrificial. Era a partilha do alimento e proposta de comunhão como forma de viver. A ceia não tinha ainda um ritual consagrado. Fazia-se nas casas/ Igrejas domésticas, através da ceia, a representação e personificação do amor solidário (é a segunda leitura de hoje: 1 Cor 11, 23- 26).  

                  As Igrejas cristãs eram diferentes de outras religiões cultuais.  O principal aspecto diferencial é que, através de sua mensagem, em especial, pela prática, levavam as pessoas a criticar a cultura do império e, desse modo, colaboravam com a sua desintegração, a partir de baixo, isso é, das comunidades pobres, das pessoas excluídas e mais vulneráveis da sociedade. Eram as assembleias de base que proclamavam Jesus como Kyrios, Soter (Senhor e Libertador) e diziam fazer essa ceia “enquanto esperamos a sua parusia, isso é, a manifestação de sua vinda”. Essa não conformidade com o sistema violento e excludente, dava ao Cristianismo uma fisionomia, poder-se-ia dizer, hoje, socialista. O livro dos Atos retrata esta forma de ser e de conviver na passagem onde afirma, de modo idealizado e utópico, que os primeiros cristãos: tinham tudo em comum, repartiam o que tinham, viviam em comunidade. A cada um era dado, conforme sua necessidade (At 2, 42- 47 e 4, 32- 37). 

            Infelizmente, como podemos comprovar através dos relatos históricos, para ser aceita pelo Império, pouco a pouco, as Igrejas cristãs acabaram renunciando e transmutando essa dimensão transformadora (revolucionária). Ao querer converter o Império romano, perdeu sua força profética e muitas vezes foi por ele absorvida e corrompida. 

Hoje, para retomarmos o espírito original da Páscoa, temos de refazer esse caminho profético e ressignificar em nosso tempo e realidade essa dimensão da fé bíblica à luz da mensagem originária/proveniente de Jesus, como os bispos latino-americanos definiram na Conferência de Medellín (1968): “libertadora de toda humanidade e de cada ser humano por inteiro”(Med 5, 15). Uma Igreja pascal significa isso: uma Igreja que, pelo seu modo de ser e de agir, se torne fermento e sacramento de uma sociedade nova, de acordo com o projeto original de Deus para o mundo. 

            A celebração da Quinta-feira Santa nos diz como viver esse serviço à humanidade. Para ser verdadeira, a Eucaristia deve expressar a comunhão dos irmãos e irmãs que celebram e esta comunhão precisa se concretizar na doação da vida e na solidariedade às pessoas e ao mundo. 

De muitas formas, muitas pessoas doam a sua vida, seja através de trabalhos que contêm riscos, seja, por exemplo, nos serviços de saúde e assistência. seja em lutas de libertação por terra, teto e trabalho para todos e todas, de forma igualitária, como propõe o Papa Francisco e, ou ainda, com os gestos simbólicos de amor pelos quais uma mãe ou pai se sacrificam por um filho ou filha.   O que caracteriza a doação de quem faz isso como discípulo ou discípula de Jesus é que isso expressa o amor maior. O evangelho afirma: "Ninguém tem maior amor do que quem dá a sua vida pela pessoa que ama com predileção" e é isso que o lava-pés revela e demonstra. 

No capítulo anterior, o evangelho contava que, em Betânia, (na casa dos pobres), Maria, amiga querida de Jesus, derramou perfume nos seus pés, ungiu sua cabeça como se fosse sacerdote ungindo um profeta e Jesus diz que ela fez isso anunciando a sua sepultura e ressurreição, já que, no domingo pela manhã, as mulheres irão ungir o corpo do Mestre, mas não o encontrarão mais morto. Ela estava antecipando essa unção. Ela estava cumprindo esse serviço de amor. Agora é Jesus que ao se colocar à mesa, cumpre esse mesmo serviço, ao lavar os pés dos discípulos e discípulas. 

             Os próprios discípulos não compreendem o gesto de Jesus, de abaixar-se e se colocar a serviço. O evangelho conta que Pedro se nega duas vezes a aceitar que Jesus faça esse gesto com ele. É possível que por trás da figura de Pedro seja a própria comunidade do evangelho que não aceita tal ato. Jesus diz a Pedro: "Se você não aceitar que eu lave seus pés, não terá parte comigo". Pedro responde: "Então, lave não somente os pés, mas as mãos e a cabeça". Poderia estar se referindo aos ritos de ablução do Judaísmo. Mas, Jesus não quer fazer rito. É mesmo um gesto de vida. E responde a Pedro:  O que agora você não compreende, vai compreender mais tarde.  E no final, vai perguntar a todos/as: Vocês compreenderam o que eu fiz a vocês? 

               Para que se compreenda a reação de Pedro, deve-se ter presente que, para a cultura da época, em certos círculos helenizados, escravos lavavam os pés dos senhores quando estes entravam em casa, mas ao entrarem em uma refeição, se poderia lavar as mãos, mas não os pés. E o modo de fazer de Jesus com o seu grupo mais íntimo deu ao gesto um caráter de intimidade afetuosa. Um autor chegou a se perguntar e supor se a atitude de Judas de se retirar da ceia não teria a ver com certo ciúme de Pedro. Independentemente disso, sem dúvida, Jesus vai além dos gestos convencionais e se revela servidor no amar até o fim, como diz o próprio texto ao introduzir o relato. 

             O lava-pés prefigura a cruz. Tanto em um momento como em outro, Jesus se despoja das vestes e se doa a um serviço que une afeto cheio de ternura e, ao mesmo tempo, profecia social de total inversão das categorias do mundo. Ao lavar os pés dos discípulos e discípulas, ele faz no gesto, o que a seguir vai expressar em palavras em seu discurso de despedida. Vai nos revelar sua aliança de intimidade concluída pela doação de sua vida, quando ele, na cruz, nos entrega o seu Espírito. 

                

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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