A memória perigosa do martírio
Em toda a história, mas especialmente nas décadas mais recentes, diariamente na América Latina convivemos com notícias de assassinatos e massacres que não nos deixam esquecer a tragédia que vivemos de mortes e vidas severinas. Quantos índios e negros ainda têm de derramar seu sangue para que os pobres e oprimidos tenham sua dignidade reconhecida e possam viver em paz? Nenhuma morte é insignificante, mas algumas dessas tragédias tomam o sentido de sinal emblemático. Nesse sábado, 16 de novembro, celebramos os 30 anos do massacre dos famosos mártires da Universidade Centro-americana (UCA) em San Salvador. Na noite de 16 de novembro de 1989, homens armados, paramilitares do Exército Salvadorenho, entraram na residência dos padres jesuítas na Casa dos padres que ensinavam na Universidade e mataram violentamente os seis jesuítas que encontraram dormindo na casa, uma senhora que cuidava da cozinha e a sua filha. No dia seguinte, pela manhã, foram encontrados os corpos no pequeno jardim ao lado da casa. Ali estavam os corpos dos padres Joaquín López, Ignacio Ellacuría, Segundo Montes, Juan Ramón Moreno, Amando López e Ignacio Martín-Baró, assim como os corpos da senhora Elba Ramos, cozinheira e de sua filha, Celina Ramos, 16 anos.
A única razão desse massacre foi o fato dos padres jesuítas da UCA sempre terem defendido a justiça e a causa dos pobres. Lutavam pela Paz em El Salvador e defendiam o diálogo do governo com os guerrilheiros. Eles todos foram mortos depois de serem torturados, o que revelava o ódio dos matadores. Os corpos estavam todos perfurados de bala e principalmente os cérebros dos seis tinham sido esmagados. Como se esmagando os cérebros, eles conseguissem acabar com o pensamento libertador. Os padres mortos deveriam ser sete, mas por acaso naquela noite, o padre Jon Sobrino tinha um compromisso na periferia e dormia fora de casa. Foi o único sobrevivente. Hoje, idoso e doente, aos 82 anos, continua testemunha da justiça e da libertação. Foi ele que escreveu nesses dias aos seus irmãos mártires: “Que a paz de vocês transmita aos vivos a esperança, e que a lembrança do martírio que vocês viveram não nos deixe descansar em paz”.
É claro que eu não gostaria que voltasse o tempo em que padres eram martirizados por causa do seu testemunho de amor aos pobres e o seu compromisso de vida em favor dos oprimidos. Hoje, os assuntos que parecem preocupar a muitos padres jovens e mesmo a bispos em suas dioceses parecem ser de outra natureza e nada terem a ver com os motivos pelos quais no Brasil o padre Josimo Tavares, o padre Ezequiel Ramin e outros deram a vida, assim como os seis jesuítas de San Salvador assinaram com o próprio sangue o testemunho de Jesus, mais profundo e falante do que todas as pregações do mundo. Não tenho de desejar que voltem as perseguições porque elas nunca cessaram para aqueles que se mantêm fieis ao testemunho do reino de Deus na defesa da vida dos pobres e da Terra. Hoje, essas perseguições podem tomar outras formas, mas continuam fortes.
O Sínodo sobre a Amazônia, a renovação do Pacto das Catacumbas, feita por mais de 200 bispos, padres e missionários/as em Roma, assim como o testemunho do papa Francisco, ele também jesuíta como os mártires da UCA e cada dia mais odiado e atacado por grupos da própria Igreja, tudo isso nos anima a crer que “algo novo está nascendo” e que o Espírito de Deus está nos animando de novo para o testemunho radical do Evangelho, como os mártires de San Salvador viveram. Como o martírio não é apenas uma forma de morrer, mas principalmente uma forma de viver, (na fidelidade ao testemunho do Cristo), nós estamos sendo convocados para viver e para testemunhar a luta pela vida do nosso povo. Amém.