As nossas buscas da moeda perdida
A imagem do pastor vem de uma página da Bíblia judaica. Jeremias prometeu: “Aquele que dispersou Israel, o reunirá, o guardará como o pastor a seu rebanho” (Jr 31, 10). Outras profecias falam do pastor em busca da ovelha desgarrada (Ver, por exemplo, Ezequiel 34, 11- 16). Tem conotação fortemente política porque a figura do pastor era associada aos governantes. Em Ezequiel, Deus diz que substituirá os pastores maus que não cuidam das ovelhas. Deus mesmo será pastor (Cf. Ez 34, 10- 11).
Alguém pode perguntar como um pastor que tem cem ovelhas vai se desgastar tanto atrás de uma que se perdeu. É preciso ter uma relação pessoal como pastores têm com seus animais para que isso aconteça. Nessas duas parábolas, o verbo usado é heurikso, que significa algo que se encontrou depois de uma busca angustiada. Daí vem a expressão clássica atribuída a Arquimedes: Eureka!
É importante sublinhar que o pastor da parábola vai ao encontro da ovelha desgarrada não porque ela merece, (não se diz que era uma ovelha dócil ou obediente ou afetuosa). Nada disso importa. O que interessa é sua situação de necessidade. Ela se perdeu. É o fato da ovelha estar perdida que leva o pastor a procurá-la. Deus é assim com o pecador. É frequente que padres e pastores apliquem essa parábola à Igreja. Essa interpretação não é correta. Não podemos aplicar essa parábola à Igreja como se as 99 ovelhas fossem as pessoas que pertencem à Igreja e a extraviada a que está fora. Não se pode confundir Igreja com o reino de Deus. Quando Jesus contou essa história, não existia ainda Igreja formada. Nas palavras de Jesus, "fora" e "dentro" se refere ao caminho da vida, da justiça onde Deus encontra cada ser humano.
A parábola da mulher e da dracma perdida é mais concreta e mais revolucionária. Aí, de fato, Deus é comparado com uma mulher pobre, dona de casa que luta para reencontrar a moeda que era o salário de todo um dia de trabalho. Do ponto de vista relacional, não é a mesma coisa uma ovelha que se cria e uma moeda que se tem guardada em casa. A ovelha é mais do que um dinheiro. É ser vivo. Mas, é preciso lembrar que, na situação da mulher pobre, a dracma era o pagamento de um dia inteiro de salário agrícola[1]. Essa mulher é muito mais pobre do que o tal pastor da parábola. O pastor tinha cem ovelhas. A mulher não tem cem dracmas. Só tem dez. Portanto, perdeu um décimo do que tinha e não uma entre cem. (Quem perde o décimo perde muito mais do que quem perde uma entre cem). Além disso, a moeda é a única garantia de sua autonomia pessoal, de sua liberdade em um mundo no qual as mulheres não trabalhavam profissionalmente e dependiam do homem. Por isso, aquela moeda perdida representava muito para a mulher poder viver como pessoa livre e digna.
Jesus compara Deus com aquela mulher pobre. Será que alguma vez já pensamos em Deus como uma dona de casa pobre? Quando encontramos ou visitamos uma mãe de família de periferia, pensamos estar vendo uma imagem de Deus? Conforme a parábola de Jesus, essa mulher mora em casa pequena, de porta baixa e sem janelas como eram as casas pobres das aldeias do caminho de Jerusalém. Por isso, reparem que ela tem de, mesmo durante o dia, acender uma lâmpada para procurar a moeda. Varre a casa, arruma as coisas para procurar a moeda.
Tanto uma parábola como a outra (a do pastor, como a da mulher) é uma forma de dizer que Deus nos busca... E nos busca mesmo quando não estamos corretos e nem estamos buscando-o. É seu amor. E esse Deus que nos busca, se parece com um pastor e se parece também com uma pobre dona de casa. Tanto em uma parábola como na outra, a conclusão é a alegria messiânica: “Há muita alegria no céu, isto é, no coração divino, por uma pessoa que se converta”.É uma alegria do amor e da salvação.
Vejam a poesia feita pela minha querida irmã Agostinha Vieira de Mello, que muitos/as de vocês conheceram nos encontros do CEBI. Celebrando nesse início de setembro três anos de sua Páscoa, retomo o seu poema meditativo: PARABOLEANDO
Não lhe deram nome. Não dizem sua idade.
Nada se fala sobre sua profissão. Ignora-se seu estado civil.
Nada é dito sobre sua família. Nadinha sobre seus amores.
Como carteira de identidade, só isso :
“Uma mulher que tinha dez dracmas e perdeu uma”.
Seu comportamento me torna criativa.
Não vou só pelo rumo da pesquisa monetária
Dracma ? Denário ? Moeda de prata ?
Há dicas que se perdem no tempo ...
Uma dracma valia uma diária de trabalhador das vinhas ?
ou ainda, em tempo de carestia, valia uma medida de trigo ?
ou três medidas de cevada ?
Uma mulher que tinha dez dracmas e perdeu uma
me leva a uma dona de casa, mas dona de sua vida,
e de poucos haveres.
Para quem tem só dez, a perda de uma significa muito aperto
no viver, no conviver, no comer, no vestir, no ir e vir, no divertir-se,
no subexistir, no sobreviver !
Pelo seu jeito de agir, me dá vontade de chamá-la LUZIMAR, procurante feita de luz e de águas...
Ando pelos seus gestos, nutro-me do que ela fez.
Só quem perde sabe o peso da falta do que perdeu.
Só quem procura o que perdeu aplica-se à arte de revirar o mundo
a partir de sua casa !
Era uma mulher que tinha dez dracmas e perdeu uma ...
Para procurar Luzimar precisa enxergar bem.
E aí acende a lamparina. Sua casa é o lugar da perda ...
Aí usa um instrumento de procura, a vassoura, seu leme, sua bússola.
Com ela realiza uma aventura, procura não de qualquer jeito,
procura com cuidado, cuidadosamente.
Assume os riscos e os cansaços vai com a minúcia do faro
com a sabedoria da necessidade
com o aguilhão da coragem de quem tem pouco.
Imagino Luzimar revirando tudo. Mudando, mudando-se,
convertendo-se de procurante em achante !
Luzimar é de luz e de águas ...
Não tinha apenas vizinhas. Tinha vizinhas e amigas
(não é tão comum ...) Luzimar convertida é festeira
partilhante de alegria. Convoca. Celebra o que é digno de festa !
Perder → procurar → encontrar → comungar → festejar.
Luzimar, assim na terra Como no céu ... Amém !
Agostinha Vieira de Mello
[1]- Cf. JOAQUIM JEREMIAS, As Parábolas de Jesus, Paulinas, 1971, p. 160- 161.