Marcelo Barros
Os rabinos antigos diziam que é perigoso a gente querer “explicar” uma oração. A relação amorosa se expressa de forma afetuosa. A oração não pode ser reduzida a um conjunto de fórmulas conceituais. Trata-se de um estado do ser, de um modo de relacionar-se com amor e abertura interior. Santa Tereza dizia: “Orar não é falar, não é pensar. É amar”. Em muitas religiões a oração está ligada ao respirar, à quietude, o se colocar diante de Deus com humildade. Nas espiritualidades dos povos originários e comunidades negras, a oração está ligada ao corpo, à dança, ao sentir nas veias e nos ossos a presença e a ação do Espírito.
No Cristianismo
oriental e também hoje no Ocidente, a prática hesicasta da Oração do Coração,
através da repetição de uma invocação simples como o nome de Jesus, ou uma
palavra como “Marana-tha!” (“Vem, Senhor, vem!”) tem ajudado muita gente. A
oração conhecida como o Pai Nosso, mais do que uma fórmula de oração, é uma
escola de oração. É como um padrão, um jeito de situar-se diante de Deus. O Pai
nosso que Jesus nos ensinou a orar diz como é o nosso Deus: Pai que nos ama com
amor de mãe.
O mais
importante não é a recitação da fórmula e sim o espírito em que ela nos induz.
O que podemos fazer é compreender o contexto histórico em que Jesus a ensinou e
o que cada pedido evoca na vida da gente e do povo.
Conforme este
evangelho, o contexto no qual Jesus ensinou os discípulos e discípulas a orar
fica sempre indeterminado: “Certo dia, em certo lugar...” Ao que tudo indica, é
uma oração que procede do próprio Jesus histórico. Essa oração foi transcrita
tanto pelo evangelho de Lucas, quanto pelo de Mateus. Parece que Mateus
conservou a versão mais original, de estilo mais aramaico. A Didaké, documento
cristão do primeiro século, repete a versão de Mateus[1].
Os termos parecem mais ligados à língua aramaica do que ao hebraico. Isso é um
indicio de que o texto é mais antigo (J. Carmignac e S. Schulz). A Didaké,
documento do final do século I, começo do século II, manda recita-la três vezes
por dia (Did 8, 3).
A primeira
coisa que chama a atenção é o modo carinhoso e íntimo com o qual se dirige a
Deus. Raramente, o primeiro testamento chama Deus de Pai (Is 64, 7; Ml 1, 6; Sb
14, 3, Eclo 23, 1; 3 Mac 5, 7; 6, 3). “Abba” é o diminutivo carinhoso:
“paizinho”. Lucas o chama simplesmente “Pai”,
correspondente ao hebraico Abba, paizinho.
O Pai Nosso é uma oração íntima e direta a Deus. Não tem nenhuma solenidade
litúrgica, nem estilo rebuscado. É como um diálogo simples e direto. Não é uma
oração especificamente de cristãos. Nada impede de que essa oração seja dita por
pessoas de quaisquer outras religiões que aceitem se relacionar com Deus como
alguém amoroso. Na cultura patriarcal que era a de Jesus, ele chama Deus de
Abba, Paizinho. A ternura e o cuidado
providente que estão expressos no termo carinhoso que Jesus usa (Abba) inclui
tudo o que o melhor pai ou a melhor mãe significa para seus filhos. Então, não
é errado nem fora de propósito chamar Deus de mãe. Na língua da Bíblia quando
se diz que Deus é compaixão, está se dizendo que é “amor uterino”. Toda
maternidade e feminilidade tira sua origem de Deus (Cf. Ef 3, 14- 15).
O que, de fato,
essa oração que Jesus nos ensina pede é “que venha o teu Reino”. Ao pedir o pão
de cada dia para nós, se alude à partilha. O texto original, pedindo nossa
“parte de pão” pede o direito de partilhar, de repartir, isto é, de comer da
mesma mesa. Deus é o pai ou a mãe de família, em cuja mesa, comemos cada dia e
o que pedimos é que ele não nos deixe de fora dessa partilha da mesa comum.
Dá-nos a graça de continuar partilhando da tua mesa. E para receber a parte de
alimento. Quem come da mesa de Deus reparte a comida (o pão) uns com os outros.
O texto pede que Deus seja fiel cada dia. Como a cruz a carregar, de cada dia,
mais do que só a de hoje.
Antigamente,
nas Igrejas, se orava “perdoa nossas dívidas”, como diz
Mateus. A partir de uns anos, passamos a substituir “dívidas” por “ofensas”
que é mais amplo. De fato, Lucas muda dívida
em pecado (no grego, amartia: falta). Provavelmente, Jesus usou o
termo “dívidas” mais concreto e até
econômico, o que também não exclui dívida moral, dívida afetiva e assim por
diante. No Oriente, as comunidades costumam fazer um sinal de reconciliação e se
dar o abraço da paz antes de orar o Pai Nosso.
O
Evangelho de Lucas comenta o Pai Nosso explicando-o com duas pequenas parábolas
sobre qual deve ser a atitude do discípulo ou discípula quando ora a Deus. 1 -
A parábola do amigo importuno 2 – A
parábola do pai ou da mãe a quem um filho ou filha pede um pão.
A
parábola do amigo que chega em hora inoportuna e incômoda supõe uma situação de
emergência. Ela acontece no contexto do Oriente antigo, onde as pessoas dormiam
juntas em uma espécie de giral coletivo. Para alguém se levantar e atender à
porta, acordava todos os outros. Por outro lado, para aquela cultura, a
hospitalidade e o acolhimento são atitudes fundamentais e prioritárias. Jesus
insiste de um lado, na pobreza e carência de quem pede movido pela
hospitalidade que é sagrada (A pessoa não tem nem um pão com que receber alguém
que chegou em casa) e do outro, o dono ou dona da casa, na situação de um amigo
importunado em uma hora inconveniente. Hoje, vivemos em um mundo no qual mais
de um bilhão de pessoas representa este pobre que bate à porta do amigo pedindo
um pão à meia noite. E de fato, há pressa em atendê-lo porque a fome não
espera. A minoria das pessoas que passa bem e está em casa tranquila parece
hoje menos disponível a ajudar as pessoas que precisam do que o protagonista do
evangelho, do qual Jesus diz que se não atender o outro por amizade, o
atenderá, ao menos para se ver livre daquela situação inesperada.
O
problema dessa parábola é que não podemos pensar em Deus como aquele/a dono ou
dona da casa, ao qual nossa oração importuna. Não podemos pensar que Deus nos
atende, não por amor e sim para que o deixemos em paz. Jesus tem tal intimidade
com o Pai que o compara com uma situação humana do dia a dia do Oriente antigo.
O que ele quis foi propor que perseveremos na oração insistente. A outra
parábola é a do próprio pai ou mãe, ao qual o filho ou filha lhe pede um pão ou
um peixe. Por isso, Jesus insiste: “Peçam e lhes será dado. Busquem e acharão;
batam e lhes será aberto; pois quem pede, recebe; e quem busca acha e toda
pessoa que bate, a porta lhe será aberta. (O verbo no passivo é para evitar
usar o nome de Deus. Ele nos dará. Ai Jesus diz: lhes será dado, será aberta,
etc. É um dos sinais de que este texto vem mesmo do Jesus histórico. E aí o
pedido de quem é crente é o próprio Espírito Santo. Pedir o Espírito Santo é a
oração de toda pessoa que profetiza porque é o Espírito que inspira e fala
pelos/pelas profetas do reino de Deus hoje e sempre.
[1] - JOHN
MEIER, Jesus, um Judeu Marginal. Penso que a tradução brasileira não completou
ainda os três tomos. Ver versão espanhola, tomo II, 1, Navarra, Ed Verbo
Divino, 1999, p. 359.