Celebração do Dia do Natal: Jo 1, 1 – 18.
Palavra que se faz Gente e Amor
A cada ano, as Igrejas antigas costumam ler o prólogo do Evangelho de João nas celebrações e cultos do dia do Natal. Proclamado como evangelho do Natal, o poema do prólogo joanino revela que, para nós, cristãos e cristãs, a festa do Natal não é apenas memória do nascimento de Jesus em Belém (que nós recordamos na noite e na celebração da Vigília desta noite) e sim mais profundamente a contemplação da humanidade de Jesus em toda a sua vida. Na carne de Jesus, isso é, em sua humanidade, a Palavra de Deus armou sua tenda. Podemos sempre nos perguntar: “O que isso tem a ver comigo e com vocês? E como crer nisso sem que caiamos em uma fé que nos isole, ou nos separe da palavra de salvação que Deus nos dá através das outras religiões e caminhos espirituais?”.
Podemos também meditar nas consequências ecocósmicas da afirmação “A Palavra se fez carne”. Na pessoa de Jesus de Nazaré, a humanidade e todo o cosmos foram assumidos como expressão ou narrativa de Deus. No final desse evangelho que, hoje, proclamamos, lemos uma espécie de conclusão de tudo o que tinha sido dito antes: “Ninguém nunca viu Deus. O Filho único que é divino e está na intimidade do Pai, foi quem o explicou para nós” (v. 18). O verbo grego usado aqui “exeghésato” (de onde vem o termo exegese), significa explicar, interpretar. Isso significa que Jesus é a explicação viva do Pai. Não é apenas Jesus que parece com Deus. É Deus mesmo que, para nós, assume o rosto e o corpo humano de Jesus. E como o texto diz que de sua plenitude, nós recebemos graça sobre graça, significa que esse rosto divino não está apenas em Jesus, mas em todo ser humano e mesmo em toda a criação.
No Judaísmo, no século XVI, o rabino Isaac Luría aprofundou a teologia do tzim-tzum de Deus. O que é isso? Tzim-tzum é o retraimento ou a diminuição divina que a criação do mundo implicou. Conforme esse pensamento judaico, como uma mulher, Deus engravidou do universo. No entanto, para dar à luz à criação, precisava aceitar não ser mais tão completo. E de fato, ao dar a luz ao universo, os vasos contenedores do universo se perderam e centelhas ou fagulhas da divindade se espalharam por todo o universo. Assim, o universo não é divino, mas foi divinizado. Nós, cristãos e cristãs, podemos dizer o mesmo no Natal. Ao assumir a carne de Jesus é todo o universo que é assumido por Deus, de modo que, como diz Paulo na carta aos colossenses: “O Cristo é a imagem do Deus invisível, primogênito de toda a criação, porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis... Tudo foi criado por ele e para ele...” (Cl 1, 15- 16).
Desde tempos muito antigos, povos originários acreditavam que todos os seres vivos, plantas e animais têm espírito e formam conosco um só corpo espiritual. No Nordeste, os povos indígenas acreditam nos Encantados que moram na mata, nas pedras, nos rios e nas montanhas sagradas. Será que não podemos ligar essa forma de crer com o que os cientistas dizem quando falam que a Terra é como um superorganismo vivo que tem certas funções de qualquer organismo vivo? Como seria bom que essa festa de Natal nos abrisse para ver a encarnação divina na Terra, nas águas e em todo ser vivo. O Natal abre a porta para que todos nós, discípulos e discípulas de Jesus, possamos ver a encarnação do projeto divino no mundo que se expressou plenamente na pessoa de Jesus, agora também revelada nos Encantados, nos Orixás e em toda manifestação de amorosidade que vê a natureza como sagrada e divina.
A antiga espiritualidade oriental insistia que a finalidade do Verbo se fazer carne seria a divinização de tudo o que é humano. Hoje, assumimos isso, como vocação humana para sermos cada vez mais semelhantes a Jesus. À medida que nos tornamos humanos e cada vez mais humanizados/as, assim como Jesus se humanizou plenamente em sua vida, poderemos viver mais profundamente a semelhança divina em nós. O exegeta espanhol Juan Matteo nos ensina que o termo grego Logos que traduzimos por Palavra pode também ser traduzido por Projeto. De fato, essa Palavra-projeto é a meta de toda a criação: aquilo que o Theillard de Chardin chamava de “cristificação do universo”.
Na tradição cristã, a divinização era mais vista como processo pessoal e moral. Atualmente, precisamos ver a cristificação do universo como vocação a qual devemos testemunhar e colaborar, como também a cristificação da sociedade, através de uma política de justiça e de promoção da dignidade humana para todos e todas.
O Natal se torna assim a celebração da vocação social e política de toda pessoa que quer seguir o caminho humano de Jesus. A louvação do Natal, composta pelo nosso saudoso irmão Reginaldo Veloso afirma:
“É bom cantar um bendito, um canto novo, um louvor:
Humano, Deus se tornando, divino, o humano se achou.
De Deus, o Verbo se encarna e entre nós habitou,
Dos tristes consolação, dos pobres libertador...”