Sexta Feira da Paixão do Senhor – Jo 18,1- 19, 42
Que sentido tem para nós hoje receber em nossas vidas esse evangelho com essa visão aparentemente pouco histórica e mais teológica da paixão de Jesus que o quarto evangelho chama de “exaltação do Filho do Homem”?
No final dos anos 1970, em uma aldeia dos índios Bororo no Mato Grosso, Umero, velho guerreiro do seu povo confidenciava a religiosos que quisessem escutar: - O problema nosso é que estamos sendo destruídos como povo e estamos perdidos. E, em segredo, vou lhe dizer por que. Deus está com raiva de nós e decidiu nos destruir. Sabe por que? Porque os missionários andaram por aí espalhando que nós, os Bororo, somos culpados da morte do filho de Deus. E eu garanto ao senhor, padre, a gente nem conheceu ele no tempo que era vivo... Como a gente pode ter matado o filho de Deus?
Umero tinha suas razões para tirar essa conclusão de uma teologia que fala da cruz como sacrifício e de um Deus que precisava que o seu Filho morresse na cruz para salvar a humanidade.
Em El Salvador, o bispo Oscar Romero celebrava a paixão de Jesus contemplando a paixão dos pobres no mundo atual. Não para dizer: são santos porque estão na cruz e assim depois de mortos vão para o céu. Não. Ele denunciava que o povo estava crucificado e que a obrigação de quem tem fé é fazer tudo, o possível e o impossível para tirá-los da cruz. Por isso, ele, Romero, também foi martirizado como Jesus.
Para elucidar ainda mais a questão acima suscitada, se torna necessário dar-se conta de que, de fato, continuamos a viver em um mundo no qual imensa parte da humanidade está sendo crucificada pelo poder econômico que domina o mundo e beneficia uma minoria de menos de 5% da humanidade. Por isso, mais de um bilhão de pessoas no mundo passam fome, mais um tanto sofre carência de água potável, milhões de migrantes que não são reconhecidos como pessoas humanas. E a própria Terra, nossa casa comum, como diz o papa Francisco, está sendo crucificada e ferida pela ambição humana.
Apesar de todas as dificuldades e dos fracassos que nos sobrevêm diariamente, a nossa fé nos pede que levantemos a cabeça, renovemos a esperança e possamos descortinar a vitória pascal de Jesus ocorrendo em meio às nossas lutas interiores e morais, assim como nas lutas sociais. Se queremos ligar nossa fé à vida concreta nossa e da humanidade, precisamos compreender que Jesus morreu na cruz para que todos possam viver e para que nunca mais ninguém morra nas cruzes simbolizadas pelas diversas formas cruéis de humilhações, violências morais e físicas, desigualdades, pobrezas e exclusões... Jesus morreu na cruz para que nós todos lutemos para descer da cruz os oprimidos e perseguidos que até hoje continuam crucificados.
Hoje, celebramos a crucifixão para descrucificar os crucificados de hoje. A cruz de Jesus é esse sofrimento assumido por missão, por amor e solidariedade a todos os seres humanos, especialmente aos mais pobres e os grupos e categorias marginalizados ou perseguidos pela sociedade dominante.
O evangelho de João revela que, mesmo na Cruz, Jesus se preocupa com sua mãe ali chorando ao pé da cruz e com o discípulo amado que representa a todos nós, discípulos e discípulas. E assim como Lucas revela Jesus perdoando os seus algozes e inimigos, João nos mostra Jesus nos dando o seu Espírito mesmo quando teria motivos de se sentir abandonado e quase que traído pelos próprios discípulos. Essa atitude de amor não violento e paciente é o que ele pede de nós na nossa militância e vida diária. Nós aprendemos desse relato da paixão que o que Deus nos pede hoje é rever e corrigir nossas atitudes de intransigência e intolerância, pois, ao agir dessa forma, não nos tornamos radicalmente diferentes dos nossos adversários.
Quando o relato desse evangelho nos fala da cruz vitoriosa de Jesus é para nos ajudar a ver que o amor e a solidariedade podem tornar vitoriosas as lutas dos pequenos por justiça e por paz. Na cruz Jesus nos entrega o seu espírito que é o Espírito Santo para nos animar nessa luta para que venha a esse mundo o reino de Deus.