Blog Aqui vamos conversar, refletir e de certa forma conviver.

A Páscoa do Cristo na vida e na cruz dos povos crucificados

Sexta Feira da Paixão do Senhor – Jo 18,1- 19, 42

                                         A Páscoa da Cruz nas pessoas crucificadas e nos povos martirizados

             Neste dia em que celebramos a Páscoa da Cruz, torna-se graça divina mas também é nossa responsabilidade escutar a boa nova contida na narrativa  da paixão de Jesus segundo João. No quarto evangelho, o relato da paixão de Jesus (João 18 e 19), se diferencia das outras versões da paixão. Enquanto os demais evangelistas sublinham os sofrimentos de Jesus, o quarto evangelho prefere mostrar como, mesmo em meio a muitos sofrimentos, é Jesus que toma a iniciativa dos acontecimentos e dirige o rumo do que vai acontecendo. Marcos, Mateus e Lucas narram que Jesus passou por um momento de agonia e angústia no Horto das Oliveiras. Jesus teria até pedido ao Pai: “Afasta de mim este cálice”. O quarto evangelho não conta nada disso. Revela que Jesus foi ao jardim de Getsêmani para orar. E quando os soldados se aproximam para prendê-lo, é o próprio Jesus, que vai ao encontro dos soldados e toma a iniciativa de perguntar: A quem procurais? E quando eles dizem: Jesus de Nazaré,  Jesus responde:  Sou eu, a mesma palavra que define o nome divino no Êxodo. Ao ouvir essa palavra, são os soldados que caem e Jesus que fica de pé. Do mesmo modo, quando Pilatos o interroga, Jesus se proclama claramente como tendo vindo ao mundo para dar testemunho de que o reino de Deus é verdade. Na mesma linha, de acordo com esse evangelho, foi ao inclinar a cabeça para expirar que Jesus nos entregou o Espírito.

Que sentido tem para nós hoje receber em nossas vidas esse evangelho com essa visão aparentemente pouco histórica e mais teológica da paixão de Jesus que o quarto evangelho chama de “exaltação do Filho do Homem”? 

No final dos anos 1970, em uma aldeia dos índios Bororo no Mato Grosso, Umero, velho guerreiro do seu povo confidenciava a religiosos que quisessem escutar: - O problema nosso é que estamos sendo destruídos como povo e estamos perdidos. E, em segredo, vou lhe dizer por que. Deus está com raiva de nós e decidiu nos destruir. Sabe por que?  Porque os missionários andaram por aí espalhando que nós, os Bororo, somos culpados da morte do filho de Deus. E eu garanto ao senhor, padre, a gente nem conheceu ele no tempo que era vivo... Como a gente pode ter matado o filho de Deus?  

Umero tinha suas razões para tirar essa conclusão de uma teologia que fala da cruz como sacrifício e de um Deus que precisava que o seu Filho morresse na cruz para salvar a humanidade. 

Em El Salvador, o bispo Oscar Romero celebrava a paixão de Jesus contemplando a paixão dos pobres no mundo atual. Não para dizer: são santos porque estão na cruz e assim depois de mortos vão para o céu. Não. Ele denunciava que o povo estava crucificado e que a obrigação de quem tem fé é fazer tudo, o possível e o impossível para tirá-los da cruz. Por isso, ele, Romero, também foi martirizado como Jesus. 

Para elucidar ainda mais a questão acima suscitada, se torna necessário dar-se conta de que, de fato, continuamos a viver em um mundo no qual imensa parte da humanidade está sendo crucificada pelo poder econômico que domina o mundo e beneficia uma minoria de menos de 5% da humanidade. Por isso, mais de um bilhão de pessoas no mundo passam fome, mais um tanto sofre carência de água potável, milhões de migrantes que não são reconhecidos como pessoas humanas. E a própria Terra, nossa casa comum, como diz o papa Francisco, está sendo crucificada e ferida pela ambição humana. 

Apesar de todas as dificuldades e dos fracassos que nos sobrevêm diariamente, a nossa fé nos pede que levantemos a cabeça, renovemos a esperança e possamos descortinar a vitória pascal de Jesus ocorrendo em meio às nossas lutas interiores e morais, assim como nas lutas sociais. Se queremos ligar nossa fé à vida concreta nossa e da humanidade, precisamos compreender que Jesus morreu na cruz para que todos possam viver e para que nunca mais ninguém morra nas cruzes simbolizadas pelas diversas formas cruéis de humilhações, violências morais e físicas, desigualdades, pobrezas e exclusões... Jesus morreu na cruz para que nós todos lutemos para descer da cruz os oprimidos e perseguidos que até hoje continuam crucificados. 

Hoje, celebramos a crucifixão para descrucificar os crucificados de hoje. A cruz de Jesus é esse sofrimento assumido por missão, por amor e solidariedade a todos os seres humanos, especialmente aos mais pobres e os grupos e categorias marginalizados ou perseguidos pela sociedade dominante. 

 O evangelho de João revela que, mesmo na Cruz, Jesus se preocupa com sua mãe ali chorando ao pé da cruz e com o discípulo amado que representa a todos nós, discípulos e discípulas. E assim como Lucas revela Jesus perdoando os seus algozes e inimigos, João nos mostra Jesus nos dando o seu Espírito mesmo quando teria motivos de se sentir abandonado e quase que traído pelos próprios discípulos. Essa atitude de amor não violento e paciente é o que ele pede de nós na nossa militância e vida diária. Nós aprendemos desse relato da paixão que o que Deus nos pede hoje é rever e corrigir nossas atitudes de intransigência e intolerância, pois, ao agir dessa forma, não nos tornamos radicalmente diferentes dos nossos adversários. 

Quando o relato desse evangelho nos fala da cruz vitoriosa de Jesus é para nos ajudar a ver que o amor e a solidariedade podem tornar vitoriosas as lutas dos pequenos por justiça e por paz. Na cruz Jesus nos entrega o seu espírito que é o Espírito Santo para nos animar nessa luta para que venha a esse mundo o reino de Deus. 

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

Informações