A pesca do mais humano em nós
O evangelho lido nesse 5º domingo comum (ano C) conta o chamado dos primeiros discípulos na ocasião de uma pesca considerada extraordinária ou mesmo milagrosa (Lc 5, 1- 11).
De acordo com Lucas, até este episódio da pesca milagrosa, Jesus sempre tinha falado nas sinagogas e ali curava as pessoas. Neste texto, ele aparece falando em uma praia, para o povão, fora da instituição religiosa e de forma que acaba constituindo um grupo de vida e missão. Agora, Jesus inicia um grupo. Ele chama discípulos para esse grupo entrando na realidade da vida deles. Encontra-os no lugar em que trabalham e a partir da experiência de vida de cada um.
Na cultura bíblica, a pesca, assim também como a colheita da lavoura, é imagem que remete à intervenção definitiva de Deus na história da humanidade. Na imagem da pesca, há duas imagens para acentuar o tempo novo em que Deus intervém favorável ao seu povo. A primeira imagem é que "o mar tem muito peixe".Para haver boa pesca, o primeiro elemento é que as águas sejam muito fecundas e tenham muitos peixes. Faz parte da transformação messiânica o sinal de que águas estéreis ou sem peixe se tornem fecundas e cheias de peixes. Essa simbologia levou as primeiras comunidades cristãs a ligarem a imagem da pesca com a missão da Igreja. Essa é a segunda imagem. “Eu farei de vocês pescadores de gente”.
Hoje, devemos tomar cuidado com essa imagem porque a imagem da pesca é ruim para o peixe. Normalmente se pesca para comer ou para vender. Isso significa para matar o peixe. Compreender a missão como pesca e o missionário como pescador contém uma noção de violência, de proselitismo e conquista ou pior ainda de instrumentalização das pessoas.
A parábola da pesca tem outro significado. Na Bíblia, a rede que junta muitos peixes é como a imagem do rebanho que reúne muitas ovelhas, a imagem da cesta que traz muitos pães e assim por diante. São instrumentos que reúnem as pessoas não para a morte e sim para a vida. Na pesca comum, o peixe é tirado das águas e portanto morre. Na pesca messiânica, se fosse usar essa expressão, o peixe seria salvo das águas do mundo. Na cultura judaica antiga, o mar era o símbolo das forças do mal. “Pescar pessoas ” significava tirar alguém de um perigo grave, ajudar as pessoas a sair de todas as opressões que lhe impedem crescer e desenvolver suas potencialidades.
Mas, se queremos continuar compreendendo a cultura do evangelho, temos de ir além de certo psicologismo que lê isso apenas no plano individual. Na cultura semita, o olhar é sempre o mais concreto possível e em uma dimensão comunitária. Não se trata apenas de libertar pessoas isoladamente e sim de pensar em estruturas de salvação e libertação para o povo e especialmente as categorias mais oprimidas.
Quem seguiu a recente campanha eleitoral de outubro e a postura de muitos cristãos, tanto evangélicos e seus pastores, como católicos e seus padres e mesmo alguns bispos, teria o direito de pensar isso: Que fé é essa? De que Deus estão falando??? De que lado está Deus?
Às vezes, as Igrejas todas dão essa impressão, se se olha a pesca como os discípulos perceberam a pesca daquela noite. A noite seria o ambiente mais adequado para a pesca e, entretanto, não pescaram nada. É a retomada da escuta da palavra de Jesus, como ela é, que provoca o fato de que, mesmo em hora que não seria tão apropriada (pela manhã), os discípulos jogam à rede à direita da barca. E aí sim a pesca é fecunda e maravilhosa.
O evangelho conta a parábola da pesca como trabalho de Pedro e a ele se juntam dois companheiros, também pescadores, os irmãos, filhos de Santiago. Eles três serão os pilares do grupo dos doze: Pedro, Tiago e João. Hoje, isso pode nos fazer ver que cada um dos três insiste em um jeito de missão bem diferente. Não existe um estilo único ou um modo único de ser ministro e nem de cumprir a missão. Os ministérios devem ser diversos e a missão deve zelar por essa diversidade. Diversidade não significa contradição ou polos opostos. É diversidade de estilos e de funções no mesmo caminho da justiça, da paz e do cuidado com a natureza.
Em seu comentário a esse texto, publicado por Magda Melo na comunicação semanal que ela faz por email, o padre Adroaldo afirma: “Rema mar adentro!”, ressoa a voz de Jesus. (...) Este apelo de Jesus é muito simbólico. (...) Só nas profundezas é que se pode extrair o mais autêntico do ser humano, o que é mais nobre e divino. (...) Tudo o que, em vão, buscamos na superfície, está dentro de nós. Mas, ir mar adentro exige ultrapassar as seguranças do “eu superficial” e adentrar-nos nas incontroladas águas de nosso ser profundo.
Neste contexto atual, no qual corremos o risco de nos converter em pessoas “grudadas” a uma tela, se faz mais necessário que nunca humanizar a rede para “pescar o humano” que está escondido no oceano interior de cada um (e das comunidades e grupos humanos, acrescento eu)”.
O que está em jogo é libertar o que há mais profundo em nós (como pessoas e como comunidades) para a realidade nova do reinado divino em um mundo transformado.