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A prioridade da partilha para a fé

XVII Domingo comum: Jo 6, 1- 15. 

                                            A prioridade da partilha em um mundo fechado ao amor

                 A ONU aponta que, de 2020 para os nossos dias, o número de pessoas afetadas pela fome em todo o mundo aumentou em milhões. Atualmente, calcula-se que quase um bilhão de pessoas vive em situação de fome ou de insegurança alimentar. No Brasil, mesmo com os esforços do atual governo federal e seus programas emergenciais, milhões de pessoas ainda são vítimas dessa forma de organizar a sociedade, a partir da ambição da elite e da política centrada no ódio e na morte. 

 Já na década de 1960, Dom Helder Camara expressava a sua dor diante do fato de que o mundo é assim. Ele chamava a atenção para o fato de que os países que mais oprimem os outros e são os maiores responsáveis pela desigualdade social e pela exclusão de milhões de pessoas das mínimas condições de vida são, justamente, os que se dizem de origem e cultura cristã. Dom Helder percebia que, no decorrer da história, com exceções de algumas figuras excepcionais, mais ou menos dissidentes, em geral, as Igrejas têm legitimado e sustentado o sistema social e político assassino e opressor. Em Riobamba, no Equador, nos seus últimos momentos de vida, o bispo Leónidas Proaño murmurava: - “Meu Deus, agora vejo com tristeza e dor que minha Igreja tem uma responsabilidade imensa de culpa por tudo o que os povos indígenas sofrem”.  

É à luz dessa realidade que convido vocês a meditarmos no texto evangélico, lido pelas comunidades, neste XVII Domingo comum do ano: Jo 6, 1 – 15.

 Esse relato é contado por uma comunidade, constituída por gente pobre, na qual muitos/as viviam no Império Romano do final do primeiro século da nossa era como residentes sem documento, isso é, não tinham sua cidadania reconhecida. 

Desde os anos 80, as comunidades cristãs tinham rompido com as sinagogas judaicas, mas em termos de administração social, nas cidades do Império, continuavam a depender da jurisdição dos rabinos. Os donos do império não faziam distinção entre judeus e cristãos. Por isso, as assembleias de discípulos e discípulas de Jesus, (as Igrejas de base) começavam a ser mal vistas e perseguidas pelas autoridades do Império. Esse foi o contexto histórico, no qual as comunidades joaninas recordam o episódio do evangelho que contam no texto que lemos hoje. No decorrer da história, essa cena ficou conhecida como “multiplicação dos pães”, embora, em nenhum lugar do texto, se fale em multiplicação. O evangelho diz que Jesus repartiu (o verbo grego é distribuir) pão e peixe. 

Um forte sinal de que a preocupação com o fato de que o povo tenha o que comer (é o que, hoje, chamamos segurança alimentar) é tão importante para os evangelhos é o fato de que, fora dos relatos da paixão de Jesus, esse episódio no qual Jesus alimenta uma multidão no deserto é o único acontecimento da vida de Jesus que os quatro evangelhos reproduzem, sendo que dois deles (Marcos e Mateus) contam como se esse fato tivesse ocorrido duas vezes. (Marcos 6, 35 – 44 e de novo no capítulo 8, 1- 9 e Mateus 14, 13 – 21 e de novo 15, 32 – 38) 

 O relato de João sobre esse episódio da partilha dos pães e dos peixes no deserto tem algumas particularidades, como o fato de ligar esse fato à festa da Páscoa (“Estava próxima a Páscoa dos Judaítas). Além disso, João esclarece que isso aconteceu na margem do lago que o evangelho chama de Mar de Tiberíades, por causa da cidade construída em honra a Tibério. O fato de Jesus não ter subido a Jerusalém para a Páscoa já chamava a atenção. No entanto, o fato de reunir muita gente daquela região era ainda mais grave. Pelo fato de estar em um território habitado por não judeus, as pessoas já eram consideradas impuras e pecadoras. Não poderiam mesmo entrar no templo de Jerusalém, nem celebrar a Páscoa. O evangelho diz que Jesus celebrou com aquele povo outra forma de comunhão. Provocou os discípulos sobre como comprar alimento para tanta gente. O evangelho diz claro que queria colocá-los à prova. Queria que compreendessem que a solução para a comida não poderia vir do dinheiro. 

Nos outros evangelhos, os discípulos dizem que seriam necessários duzentos denários, o equivalente ao salário de um trabalhador durante um ano para alimentar aquela multidão. Nesse evangelho, Filipe diz que nem essa soma seria suficiente. Hoje, sabemos que a fome e a insegurança alimentar da humanidade nunca será resolvida por soluções capitalistas. Jesus contrapõe a economia do dom e da partilha ao que podemos chamar de economia do lucro. Essa economia solidária e alternativa se expressa hoje no modo de organizar a economia das comunidades originárias. Significa a organização comunitária da troca, da gratuidade e da reciprocidade.

No evangelho de João, é Jesus que toma a iniciativa de distribuir a comida a partir dos cinco pães e dois peixes que um menino tinha trazido. Diferente dos outros evangelhos, João diz que os pães eram de cevada (o único pão que os mais pobres podiam comer, porque era mais barato) e os peixes eram secos, alimento que as pessoas podiam levar para viagem, sem estragar. Jesus dá graças (em grego é fez eucaristia) e distribuiu.  É possível que o verdadeiro milagre tenha sido o fato de que, ao verem o menino colocar em comum o pouco que tinha trazido para comer, outras pessoas tenham aceitado fazer o mesmo. Assim, aquilo que era impossível aconteceu: todos comeram. Jesus manda os discípulos recolherem o que sobrou. Há quem diga que somente com o que se desperdiça e joga fora do que sobra no comércio e nas casas, se conseguiria resolver a fome do mundo. Mas, para isso, seria necessária a cultura do cuidado com os outros e da partilha. O 

Infelizmente, a religião centrada no culto não cria isso. Para suscitar a partilha, Jesus reúne o povo no deserto. Como no tempo antigo, o Amor Divino alimentou o povo no deserto com o maná (Cf. Ex 16). Agora, na vida de Jesus, essa partilha dos pães e dos peixes é a Páscoa que retoma o novo Êxodo do povo que continua sendo marginalizado pela política, mas também pela religião do templo. 

Provavelmente, uma aglomeração de tanta gente na Galileia já era vista como evento subversivo e perigoso. O povo reage ao sinal da partilha que Jesus cria dizendo: Esse é o profeta! Isso significa: Ele é o Messias que nos vem libertar. A multidão quer proclamar Jesus como rei. Assim como Moisés, magoado e irritado, quebra as tábuas da aliança e sobe de novo o monte Sinai, também Jesus rejeita a realeza, como sendo idolatria e se evade para a solidão da montanha. 

Para nós, hoje, fica o apelo profético: superar o messianismo fácil do poder e testemunhar por nossa vida que o reinado divino vem a partir da comunhão e da partilha. 

                                        Cântico: Pão em todas as mesas

Zé Vicente

A mesa tão grande e vazia
De amor e de paz, de paz!
Aonde há luxo de alguns
Alegria não há jamais!
A mesa da Eucaristia nos
Quer ensinar, ah, ah
Que a ordem de Deus
Nosso Pai é o pão partilhar

Pão em todas as mesas
Da Pascoa a nova certeza
A festa haverá
E o povo a cantar, aleluia!

As forças da morte, a injustiça
E a ganância de ter, de ter
Agindo naqueles que impedem
Ao pobre viver, viver
Sem terra, trabalho e
Comida a vida não há, não há
Quem deixa assim e não age
A festa não vai celebrar

Irmãos, companheiros na luta
Vamos dar as mãos, as mãos
Na grande corrente do amor
Na feliz comunhão, irmãos
Unindo a peleja e a certeza
Vamos construir, aqui
Na terra, o projeto de Deus, todo povo a sorrir

Bendito o Ressuscitado
Jesus vencedor, ô ô
No pão partilhado a presença
Ele nos deixou - deixou!
Bendita é a vida nascida de quem
Se arriscou, ô ô
Na luta pra ver triunfar
Neste mundo o amor!

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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