A fé que liberta e testemunha o Amor
O Evangelho que as comunidades leem nesse domingo (Marcos 7, 1 – 23) conta que Jesus tinha atravessado para o outro lado do lago de Genesaré e vieram religiosos (os fariseus e os professores da Bíblia) para verificar se o modo deles praticarem a religião estava correta. Observam que os discípulos de Jesus não praticam as regras de pureza ritual (comem sem lavar as mãos). O que para nós é uma regra de higiene, para eles se tinha tornado uma regra religiosa que tornava a pessoa capaz de relacionamento com Deus. É claro que como o evangelho contou no capítulo passado, Jesus estava com os discípulos em um lugar deserto. Repartiu o pão com muita gente. Como iam ter água para lavar as mãos?
A discussão entre Jesus e os fariseus provoca da parte de Jesus as palavras talvez mais radicais contra uma religião ritual de todo o Novo Testamento. Cita Isaías (esse povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim) e diz claramente “o que torna a pessoa impura é o que sai do coração”. Jesus insiste na ética das relações e na integridade interior.
Nesses dias, estou em El Salvador e estamos concluindo o congresso de teologia da Amerindia que celebrou os 50 anos da conferência episcopal de Medellín. Ontem fomos todos do congresso em peregrinação à casa onde Monsenhor Romero viveu, a capela do hospital onde ele celebrava a missa quando foi assassinado e fomos ainda à cripta da catedral onde está o túmulo. Alguém me perguntou: Por que só depois de 38 anos e só com o papa Francisco é que Romero será canonizado? Respondi: Pessoalmente, tenho muitas restrições ao rito de canonização. Desde que Romero foi martirizado, o povo o proclamou como santo e o chama de São Romero das Américas. O que o papa faz agora é só reconhecer isso. Mas, por que demorou tanto? Por que a própria Igreja oficial, quase todos os bispos de El Salvador eram contra e alguns ainda são contra Dom Romero. Ele fez isso que Jesus fez: mostrar que o importante não é o culto nem a observância escrupulosa das leis e sim a ética do amor solidário e o testemunho do projeto divino para esse mundo.
No congresso, ajudei em uma mesa redonda sobre espiritualidade. Lá uma senhora daqui da cidade de San Salvador falou: “Na época de Dom Romero, eu era adolescente e como minha família de classe média era contra ele, eu falava mal dele. Um dia, já pouco antes dele morrer, participei de uma missa na catedral e o encontrei na porta da Igreja logo depois. Aproximei-me e disse: “Quero pedir perdão por ter falado injustamente de você”. Ele me abraçou e respondeu: “- Sabes, o importante e urgente é que se uma roda está triturando o povo, a gente consiga parar os raios da roda, ainda que com o nosso próprio corpo, se não há outro jeito”. Era uma palavra do pastor Dietrich Bonhoeffer, mártir do nazismo que Dom Romero retomava e aplicava à realidade de El Salvador. Mas isso criava problemas para as relações entre a hierarquia eclesiástica e seus ricos benfeitores, além da relação diplomática entre o Vaticano e o governo militar.
Sei pela imprensa do cardeal norte-americano que está pedindo a renúncia do papa Francisco e com acusações falsas e violentas. É sempre a mesma lógica. Uma lógica que usa a lei, a pureza da verdade e o rigor da observância mas que por trás está a defesa de privilégios religiosos, o apego ao passado e principalmente a recusa de entrar em relações de solidariedade e amor. Anteontem, o Tribunal Eleitoral decidiu negar a Lula o direito cidadão de ser candidato nas eleições presidenciais. Será que ao menos por um segundo o Tribunal pensou nesse caso o que é mais justo e melhor para o povo brasileiro e para a causa da justiça? Todos nós sabemos que a lógica é outra. Que Deus nos dê a alegria da liberdade da fé e nos ajude a sempre nos rever e assim nos converter à profecia do amor solidário acima de todas as regras e prescrições exteriores.