XXVII Domingo comum C: Lc 17, 5- 10.
A proposta revolucionária da graça
O texto do evangelho proposto para ser meditado neste XXVII domingo comum do ano C (Lucas 17, 5- 10) reúne sentenças que Jesus teria dito em contextos diferentes e sem muito nexo entre si. Provavelmente, o evangelho agrupou essas palavras a partir das parábolas sobre a amizade e a pobreza que o evangelho colocou no capítulo anterior. Os antigos gostavam desse método que ajuda a memória: um termo recorda o outro e, assim, os ensinamentos se seguem. Como se, em uma conversa livre, a pessoa dissesse: Por falar nisso... Assim, o evangelho relata a história do homem muito rico e do pobre Lázaro. Isso o leva a, no texto que lemos hoje, recomendar o cuidado para não escandalizar os pequeninos. Por falar em cuidado, recorda a questão do perdão recíproco e acaba contando a parábola sobre o serviço.
No caminho para a Páscoa, em Jerusalém, onde enfrentará os poderosos da religião, da política e da economia, Jesus parece ter vivido a dificuldade de explicar porque Deus não se manifestava imediatamente para dar início ao seu reinado. Por causa da dificuldade de perseverar na fé em meio à crise, os apóstolos pedem a Jesus “aumenta-nos a fé”.
Qual fé? Uma postura existencial de amor e esperança na missão com a qual Jesus proclamava o projeto divino no mundo e foi isso que mandou os discípulos e discípulas anunciarem. Foi essa fé que os discípulos pediram: a confiança de que, apesar de tudo, o projeto divino se realiza nesse mundo. Até hoje, ao ver o mundo em que direção caminha e constatar como o mal parece sempre vencer, sentimos a necessidade de também pedir a Jesus: aumenta-nos a fé. A dureza da vida real com um monte de injustiças e violências chacoalha a fé de muita gente.
A dificuldade não é crer, mas em que se crê e como se crê. A fé da qual Jesus diz que pode mover montanhas não se opõe a dúvidas quanto a dogmas que a Igreja defende. Nem se trata de acreditar em milagres e aparições. No caso dos primeiros discípulos e discípulas de Jesus, os evangelhos contam que até o fim eles não compreendiam o projeto de Jesus. No Evangelho de Marcos, por exemplo, os verdadeiros discípulos/as são as pessoas marginalizadas ou excluídas, pois os discípulos têm grande dificuldade de compreender o projeto de Jesus. Conforme os evangelhos, mesmo depois da paixão e ressurreição davam sinais de não compreender bem e até duvidar do projeto de Jesus, mas o próprio Jesus reconhece: “vocês permaneceram juntos comigo mesmo nos sofrimentos e até o fim” (Lc 22, 28). A fé é a adesão afetiva, pessoal e comunitária ao projeto de libertação testemunhado e ensinado por Jesus. O contrário da fé é a indiferença.
Ao pedido dos discípulos: “aumenta-nos a fé”, Jesus responde com uma comparação de sabor semítico que parece exagero: se vocês tiverem um pouco de fé, poderão só com a fé mandar uma árvore se desenraizar e se transportar ao mar. É uma imagem para dizer que a confiança (aman) na promessa de Deus nos dá uma força incalculável. Por falar nisso, conta a parábola do patrão e do empregado.
Se a gente pensar no tipo de discípulos e discípulas que Jesus tinha, é difícil imaginar que ele possa ter dito: Quem de vocês, tendo um empregado... Como poderiam ter empregados aqueles pobres que viviam da pesca no lago da Galileia e depois passaram a viver como andarilhos junto a um mestre, que confessava não ter nem onde encostar a cabeça?
Esse tipo de parábola parece mais vinda da realidade das comunidades cristãs dos anos 80 do primeiro século da era cristã do que diretamente do Jesus histórico. As comunidades sobreviviam em colônias ou províncias do império romano, que era escravocrata. Seja como for, precisamos tomar cuidado para não comparar Deus com um patrão rígido e insensível, que cobra dos empregados um serviço que vai além das regras e dos direitos trabalhistas. É claro que, na época de Jesus, não existiam esses direitos.
Atualmente, em todo o mundo, a informatização e a precariedade do trabalho fazem com que a sociedade ainda piore a situação das pessoas que trabalham. Muitas vezes, são obrigadas a trabalhar sem carteira e sem direitos à proteção. É o fenômeno da uberização no mundo do trabalho. Nessa realidade, seria um insulto falar de Deus como um patrão que exige dos servos trabalho a qualquer hora e ainda chama esse servo de inútil ou, conforme outras traduções, um servo como outro qualquer.
Na mentalidade do Capitalismo dizer que alguém é inútil significa decretar praticamente que a pessoa não merece existir, pois ele não é produtivo. Não serve para nada. Na visão do evangelho, não é assim. Inútil não seria a tradução mais correta do que Jesus disse. Seria melhor traduzir por “somos simples servos”, “cumprimos nosso dever”. O termo inútil usado nessa palavra de Jesus significa que a pessoa recebe tudo de Deus. É inútil como uma flor é inútil. É gratuita. E para sublinhar isso, Jesus diz que os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros. Conta que os operários da última hora ganham tanto quanto os que trabalham o dia inteiro e Deus ama e acolhe o filho que o abandonou por uma herança e depois foi obrigado a voltar. Até, Ele demonstra mais amor por aquele do que pelo filho que ficou sempre em casa.
Nesse evangelho, ao falar dessa relação entre servo e patrão, Jesus conta o que acontece na sociedade. Não sacraliza nem diz aprovar esse tipo de relação social. O que ele afirma é que, nesse tipo de sociedade, ao cumprir as ordens de um patrão, o empregado tem consciência de estar apenas cumprindo a sua obrigação. Assim também os discípulos e discípulas do reino de Deus devem se considerar simples servidores/as. É preciso ir além do texto. Jesus chamou Deus de “paizinho” e nunca quis que pensássemos na divindade como um patrão opressor. O que ele pede dos discípulos é a confiança, mesmo no meio da crise. Eis a finalidade do evangelho: Fazer o que é nosso dever como discípulo de Jesus e não se vangloriar por isso.
Nós vivemos em uma sociedade na qual tudo parece ter preço. Não somente todo trabalho é pago, como, muitas vezes, até as próprias relações sociais são de obrigação ou de ordem quantitativa. Se alguém dá uma coisa a outra pessoa, essa se sente obrigada a também dar. Se duas pessoas se relacionam, parecem ter sempre um interesse por trás. Por isso, em nossa cultura, é difícil compreender que Jesus diga: “Não emprestem coisas a quem possa restituir. Não deem coisas só a seus parentes e amigos. Deem a quem não pode retribuir...” Esse tipo de conselho ou proposta parece fora de sentido...
A boa notícia que esse evangelho contém é de outra ordem: é a gratuidade da salvação. A nossa relação com Deus é totalmente gratuita. Não é por lógica de mérito, que leva a recompensa, que devemos tecer relações humanas e sociais, mas não lógico do amor gratuito.
Com essas palavras, Jesus afirma que, no discipulado do evangelho, a missão não nos dá direitos em relação a Deus. Na fé, tudo é graça e não relação de méritos ou direitos adquiridos.
Hannah Arendt, a filósofa judia que aprofundou o seu pensamento a partir da realidade do nazismo, afirmou: “A pessoa humana é o único ser capaz de fazer de si mesmo um milagre”.
De certa forma, o milagre consiste na possibilidade de começar de novo. Esse recomeço não é obra apenas de alguém extraordinário, mas é tarefa da pluralidade das pessoas. Cada um só se torna livre quando é capaz de sair do seu isolamento e formar junto com os outros um projeto novo de comunidade humana. Crer na palavra de Jesus é crer no projeto divino que, diariamente os cristãos pedem ao orar: “Venha a nós o teu reino”. E crer é colaborar para que ele aconteça em um projeto novo de sociedade. Para compreendermos Lc 17,5-10 faz bem levarmos na nossa memória os milhões de pessoas anônimas que vivem a vida servindo o próximo no cotidiano, amando gratuitamente, sem nunca esperar recompensas ou galgar reconhecimentos.