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A proposta revolucionária da graça - XXVII Domingo comum C: Lc 17, 5- 10.

Marcelo Barros

Hoje, o Brasil vive um dia decisivo: o povo brasileiro deve votar nas eleições talvez mais decisivas de toda a sua história. Não se trata apenas de escolher entre candidatos e sim entre projetos de construção da sociedade e perspectivas para o país e para o mundo. Embora grande parte da sociedade   esteja consciente para a importância de votar pela democracia, infelizmente, em todo o país, a propaganda religiosa fundamentalista e o uso desonesto do nome de Deus ainda condiciona o voto de muitas pessoas. Para os ainda indecisos, vale a pena lembrar uma palavra do nosso saudoso profeta Pedro Casaldáliga: “Na dúvida, se coloque sempre do lado dos mais pobres”.

Por falar nos mais pobres, esse é o assunto com o qual começa o evangelho proposto para ser meditado neste XXVII domingo comum do ano C: Lucas 17, 5- 10. No capítulo 17, a comunidade de Lucas reúne sentenças que Jesus teria dito em contextos diferentes e sem muito nexo umas com as outras. Essas palavras devem ter sido agrupadas pelo evangelho a partir das parábolas sobre a amizade e a pobreza. Os antigos gostavam desse método que ajuda a memória: um termo vai recordando outro e assim os ensinamentos vão se seguindo. Como se em uma conversa livre, a pessoa dissesse: Por falar nisso... Assim, falando no pobre, Jesus passa a falar do cuidado com os pequeninos (para não escandalizá-los). Por falar em cuidado, Jesus recorda a questão do perdão recíproco e, por falar nisso, Jesus acaba contando a parábola sobre o serviço.

No caminho para a Páscoa, em Jerusalém, Jesus parece ter vivido a dificuldade de explicar porque Deus não se manifestava imediatamente  e dava início ao seu reino. Por causa da dificuldade de perseverar na fé em meio à crise, os apóstolos pedem a Jesus “aumenta-nos a fé”. Não se trata apenas de aumentar o tamanho da fé e sim a sua qualidade ou conteúdo. A dificuldade não é crer, mas em que se crê.

Jesus responde com uma comparação de sabor semítico que parece exagero: se tiverdes um pouco de fé, podereis desenraizar uma árvore enorme e transportá-la ao mar. É uma imagem para dizer que a confiança (aman) na promessa de Deus nos dá uma força incalculável. E, por falar nisso, Jesus acaba contando a parábola do patrão e do empregado.

Se a gente pensar no tipo de discípulos e discípulas que Jesus tinha, é difícil imaginar ele dizendo: Quem de vocês, tendo um empregado... Como poderiam ter empregados aqueles pobres que viviam da pesca no lago e depois passaram a viver como andarilhos junto a um mestre que confessava não ter nem onde encostar a cabeça?

Esse tipo de parábola parece mais vinda da realidade das comunidades cristãs dos anos 80 do que diretamente do Jesus histórico. Seja como for, precisamos tomar cuidado para não comparar Deus com um patrão que cobra dos empregados um serviço que vai além das próprias regras e direitos dos trabalhadores. É claro que, na época de Jesus, não existiam direitos dos trabalhadores como existem hoje.

Atualmente, no Brasil e em todo o mundo, a sociedade tornou mais precários os direitos dos trabalhadores/as. Muitas vezes, são obrigados a trabalhar sem carteira e sem direitos à proteção. É o fenômeno da uberização dos empregos. Nessa realidade, seria um insulto falar de Deus como um patrão que exige dos servos trabalho a qualquer hora e ainda chama esse servo de inútil.  Nesse evangelho, o que Jesus faz é contar o que acontece na sociedade dele. Ele não sacraliza esse tipo de relação social. O que ele diz é que, naquele tipo de sociedade, ao cumprir as ordens de um patrão, o empregado tem consciência de estar apenas cumprindo a sua obrigação. Assim também os discípulos e discípulas do reino de Deus devem se considerar simples servidores/as. Na obra da salvação, a ética e a missão que vivemos não nos dão direitos  em relação a Deus. Na fé, tudo é graça e não relação de méritos ou de direitos adquiridos.

Então, a boa notícia que esse evangelho contém é de outra ordem: é a gratuidade da salvação. Nós vivemos em uma sociedade na qual tudo parece ter preço. Não somente todo trabalho é pago, como, muitas vezes, até as próprias relações sociais são de obrigação ou de ordem quantitativa. Se um dá uma coisa, o outro se sente obrigado a também dar. Se duas pessoas se relacionam, parecem ter sempre um interesse por trás. E o evangelho de Jesus se torna cada vez mais distante. Por isso, em nossa cultura, é difícil compreender que Jesus diga: “Não emprestem coisas a quem possa restituir. Não deem coisas só aos seus parentes e amigos. Deem a quem não pode retribuir e assim Deus os recompensa...” Esse tipo de conselho ou proposta parece fora de sentido...

A proposta do evangelho de hoje é que a nossa relação com Deus seja totalmente gratuita. Na mentalidade do Capitalismo dizer que alguém é inútil significa decretar praticamente que a pessoa não merece existir. Não serve para nada. Na visão do evangelho, não é assim. Inútil não seria a tradução mais correta do que Jesus disse. Seria melhor traduzir por “somos simples servos”. O termo inútil usado nessa palavra de Jesusesignifica que a pessoa recebe tudo de Deus. É inútil como uma flor é inútil. É gratuita. E para sublinhar isso, Jesus diz que os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros. Conta que os operários da última hora ganham tanto quanto os que trabalham o dia inteiro e Deus ama e acolhe o filho que o abandonou por uma herança e depois foi obrigado a voltar. Até, Ele demonstra mais amor por aquele do que pelo filho que ficou sempre em casa.

É preciso ir além do texto. Jesus chamou Deus de “paizinho” e nunca quis que pensássemos na divindade como um patrão opressor. O que ele pede dos discípulos é a confiança, mesmo no meio da crise.

Hannah Arendt, a filósofa judia que aprofundou o seu pensamento a partir da realidade do nazismo, afirmou: “A pessoa humana é o único ser capaz de fazer de si mesma um milagre”. De certa forma, este milagre está na possibilidade de começar de novo. E aí este recomeço não é obra apenas de alguém extraordinário, mas é tarefa da pluralidade das pessoas. Cada um só se torna livre quando é capaz de sair do seu isolamento e formar junto com os outros um projeto novo de comunidade humana. Crer na palavra de Jesus é crer no projeto divino que, diariamente os cristãos pedem ao orar: “Venha a nós o teu reino”. E crer é colaborar para que ele aconteça em um projeto novo de sociedade.

Há apenas uma semana, o papa Francisco encerrou em Assis um encontro internacional com jovens economistas sobre a Economia de Francisco e Clara. Ali nas doze tendas nas quais os/as participantes se repartiram para pensar uma nova economia ficou claro: é possível sair deste sistema econômico que mata e um dos paradigmas que é lembrado é a economia do dom e da reciprocidade que, no mundo inteiro, os povos originários ainda praticam e ensinam à humanidade.

 

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Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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