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A relação com Deus como profecia

XVII Domingo comum: Lc 11, 1 – 13.

Viver a relação com Deus como profecia

 Neste XVII Domingo do tempo comum (ano C), o evangelho lido é Lucas 11, 1 – 13, no qual Jesus ensina os discípulos e discípulas a orar.  Conforme esse evangelho, o contexto no qual Jesus ensinou os discípulos e as discípulas a orar fica sempre indeterminado: “Certo dia, em certo lugar...”. Para a cultura religiosa comum, o lugar de oração é na Igreja ou na casa (Igreja doméstica). No tempo dos evangelhos, as comunidades cristãs já se encontravam nas casas e o livro dos Atos dos Apóstolos diz que os discípulos e as discípulas iam ao templo para orar (At 3, 1). 

Conforme esse evangelho, Jesus não determina lugar nem horário para a oração e ele mesmo ora fora dos templos e lugares considerados sagrados. Ao que tudo indica, o Pai Nosso procede do próprio Jesus histórico. Essa oração foi transcrita tanto pelo evangelho de Lucas, quanto pelo de Mateus. Documento cristão do final do primeiro século da era cristã, a Didaké  repete a versão de Mateus e manda que os irmãos e as irmãs recitem o Pai Nosso três vezes por dia (Did 8, 3)[1].  


A primeira coisa que chama a atenção é o modo carinhoso e íntimo com o qual Jesus nos ensina a nos dirigir a Deus. Raramente, o Primeiro Testamento chama Deus de Pai (Is 64, 7; Ml 1, 6; Sb 14, 3, Eclo 23, 1; 3 Mac 5, 7; 6, 3). De acordo com os evangelhos, Jesus o chama “Abba”, diminutivo carinhoso,  “paizinho”, “papai”. O Pai Nosso é uma oração íntima e direta a Deus. Não tem nenhuma solenidade, regra litúrgica, ou estilo rebuscado. É um diálogo simples e direto. Pode ser dita por pessoas de qualquer religião ou crença que aceitem se relacionar com Deus como mistério de infinito amor. Na cultura patriarcal, que era a de Jesus, ele chama Deus de Abba, Paizinho.  A ternura e o cuidado que estão expressos no termo carinhoso que ele usa (Abba) inclui tudo o que um bom pai e uma boa mãe significam para seus filhos. Então, não é errado, nem fora de propósito, chamar Deus de mãe. Na língua da Bíblia quando se diz que Deus é compaixão, está se dizendo que Deus é “Amor uterino”. Assim como toda paternidade, também toda maternidade e feminilidade têm sua fonte em Deus (Cf. Ef 3, 14- 15). 

O que, de fato, essa oração que Jesus nos ensina pede é “que venha o teu Reino”. Devemos respeitar um grupo religioso que ora: “Vamos nós para o teu reino”. No entanto, conforme os evangelhos, Jesus nos ensina a pedir que o reino venha para cá, aqui e agora. 

 

Ao pedir o pão de cada dia para nós, se alude à partilha. O texto original, pedindo nossa “parte de pão” pede o direito de partilhar, de repartir, isto é, de comer da mesma mesa. E no texto original de Lucas pede para cada dia o pão de amanhã. Não se pede pão para acumular. Deus é o pai ou a mãe de família, em cuja mesa, comemos cada dia e o que pedimos é que ele não nos deixe de fora dessa partilha da mesa comum. Dá-nos a graça de continuar partilhando da tua mesa. Dom Pedro Casaldáliga insistia sempre na relação profunda que existe entre o se dizer Pai Nosso e se ver o pão também como nosso. Pai Nosso, pão nosso.... 

 Quem come da mesa de Deus reparte a comida (o pão) uns com os outros. O texto pede que Deus seja fiel cada dia. Como a cruz a carregar, de cada dia, mais do que só a de hoje. 

Antigamente, nas Igrejas, se orava “perdoa nossas dívidas”, como diz o evangelho de Mateus. A partir do Concílio Vaticano II, passamos a substituir “dívidas” (questão econômica) por “ofensas” (questão moral) que é diferente. De fato, Lucas muda dívida em erro (no grego, amartia). Provavelmente, Jesus usou o termo “dívidas” mais concreto, o que também não exclui dívida moral, dívida afetiva e assim por diante. No Oriente, as comunidades costumam fazer um sinal de reconciliação e se dar o abraço da paz antes de orar o Pai Nosso. 

 

Na oração, o mais importante não é a recitação da fórmula e sim o espírito em que ela nos induz. Atualmente, nas mais diversas camadas da sociedade, pessoas e grupos valorizam a meditação oriental, a ioga e outras modalidades de exercícios interiores. Na espiritualidade dos povos originários, a relação com os espíritos da mata ou com os animais totens supõe estado interior de alerta, que é como oração.  Os rabinos antigos diziam que não se pode “explicar” oração. Trata-se de relação amorosa. Não se reduz a fórmulas conceituais. Santa Tereza d’Ávila ensina: “Orar não é falar, não é pensar. É amar, é como respirar”.

Em muitas religiões a oração está ligada ao respirar, à quietude, o se colocar diante de Deus com humildade. Nas espiritualidades dos povos originários e comunidades negras, a oração está ligada ao corpo, à dança, ao sentir, nas veias e nos ossos, a presença e a ação do Espírito divino. 

No Cristianismo oriental e também, hoje, no Ocidente, a prática hesicasta da Oração do Coração, através da repetição de uma invocação simples como o nome de Jesus, ou uma palavra como “Marana-tha!” (“Vem, Senhor, vem!”) tem ajudado muita gente. 

A oração conhecida como o Pai Nosso, mais do que uma fórmula, é escola de oração. O Pai Nosso que Jesus nos ensinou a orar diz como é o nosso Deus: Pai que nos ama com amor de mãe.  

Depois de nos dar o Pai Nosso, o Evangelho de Lucas completa o seu ensinamento sobre a oração com duas pequenas parábolas sobre qual deve ser a atitude do discípulo ou discípula quando ora: 

1 - A parábola do amigo inoportuno, ou sem vergonha (no grego, o termo anaideia significa isso: a não vergonha).  

2 – A parábola do pai ou da mãe a quem o filho ou filha pede pão. 

A parábola do amigo que chega em hora inoportuna supõe situação de emergência. Acontece no Oriente antigo, no qual as pessoas dormiam juntas, em uma espécie de jirau coletivo. Para alguém se levantar e atender à porta, precisava acordar os outros. Por outro lado, para aquela cultura, a hospitalidade é atitude fundamental e prioritária. Jesus insiste na pobreza e carência de quem pede, confiado na hospitalidade, que é sagrada.  

O evangelho fala de alguém que não tem nem um pão com o qual possa receber alguém. E o dono ou dona da casa vai dormir cansado e se vê importunado por alguém que bate à porta, em hora inconveniente. 


Hoje, vivemos em um mundo no qual mais de um bilhão de pessoas representa esse pobre que bate à porta do amigo que pede comida à meia noite. De fato, há pressa em atendê-lo, porque a fome não espera. No mundo atual, a ínfima minoria de pessoas que passam bem e estão em casa tranquilas parece ainda menos disponível a ajudar as que precisam do que aquele personagem do qual Jesus fala. Dele, Jesus diz que, se não atender o outro por amizade, o atenderá, ao menos, para se ver livre daquela situação inesperada. Hoje, em nossas cidades, os portões de prédios e as portarias eletrônicas eliminam essa possibilidade de importunar as pessoas que dormem e não querem ser chamadas. 

 O problema dessa parábola é que não podemos pensar em Deus como aquele/a dono ou dona da casa, ao qual nossa oração importuna. Deus nos atende porque nos ama e não para que o deixemos em paz. O que Jesus quer com essa parábola é nos propor a oração confiante e insistente. 

A outra parábola é a do próprio pai ou mãe, ao qual o filho ou filha lhe pede um pão ou peixe. Por isso, Jesus insiste: “Peçam e lhes será dado. Busquem e acharão; batam e lhes será aberto; pois quem pede, recebe; e quem busca acha e toda pessoa que bate, a porta lhe será aberta”.

O verbo no passivo é para evitar usar o nome de Deus em vão. Jesus não diz: Deus nos dará. Diz: lhes será dado, será aberta etc. É um dos sinais de que este texto vem mesmo do Jesus histórico. No caso, o pedido de quem é crente é o próprio Espírito Santo. Pedir o Espírito Santo é a oração de toda pessoa que profetiza, porque é o Espírito que inspira e fala pelos/pelas profetas do reino de Deus hoje e sempre. E essa profecia começa quando acolhemos de Jesus a revolução que Ele faz ao nos revelar um Deus que é próximo, que é Paizinho e só sabe amar. É esse Deus que devemos testemunhar no nosso modo de viver e de conviver. Que nossas orações sejam em sintonia com o Pai Nosso, oração profética!



[1] - JOHN MEIER, Jesus, um Judeu Marginal.  Penso que a tradução brasileira não completou ainda os três tomos. Ver versão espanhola, tomo II, 1, Navarra, Ed Verbo Divino, 1999, p. 359. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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