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A teimosia do fogo nas madrugadas escuras

(O evangelho de João 21 à luz da nossa realidade atual)

 Marcelo Barros

Quem olha a realidade a partir da fé não pode deixar de pensar que estamos em tempos nos quais o poder do mal parece tomar conta de tudo. Por mais que protestemos e tentemos reagir, não há como negar que temos contra nós um sistema de poder opressivo e arrogante. Em busca de segurança, mesmo parte do povo pobre entra na onda provocada pela direita raivosa. Até nas Igrejas, que deveriam ser, neste mundo, testemunhas fieis do reino de Deus, não poucos ministros e fieis se agarram ao poder mundano e à publicidade enganosa.

A partir dessa realidade, podemos ler e meditar o capítulo 21 de João. Provavelmente se trata de um acréscimo posterior feito ao conjunto do texto evangélico. Em todos os outros capítulos, o quarto evangelho revela uma comunidade na qual, em geral, todos/as da comunidade são discípulos e discípulas e não aparece nenhuma hierarquia ou ministérios particulares. Na segunda parte do evangelho, a comunidade é representada na figura do que o texto chama “o discípulo amado”.

Na mesma época em que este evangelho foi escrito, as comunidades ligadas aos evangelhos sinóticos e a Paulo já tinham apóstolos e a organização dos ministérios era mais específica. Provavelmente, o capítulo 21 de João foi acrescentado mais tarde, em uma época, na qual a Comunidade do Discípulo Amado teve de enfrentar a questão dos ministérios na comunidade.

Este capítulo tem como protagonista a Pedro, figura chave e simbólica desse modelo de Igreja centrado nos ministérios de coordenação, diferente do primeiro modelo da comunidade no qual os ministérios não eram distintos do discipulado comum. É verdade que a comunidade do quarto evangelho diz claramente que Pedro conduz os discípulos a uma pesca que não dá resultado, diz claramente que, quando reconhece Jesus na beira do lado, Pedro reconhece estar nu, põe a túnica e se joga n’água.

Em todo o capítulo, a figura de Pedro parece contraditória e até de certa forma criticada. Esse relato da pesca fracassada durante a noite revela que toda vez que um ministro toma iniciativa na missão, como se tivesse autoridade própria, sem se dar conta de que depende totalmente de Jesus,  não somente a missão fracassa, como a pessoa se revela nu, isso é, impotente. O próprio Jesus tinha dito na ceia: “Sem mim, nada podereis fazer”.

Quantas vezes, a Igreja, a nossa Igreja, parece querer caminhar independentemente. Organiza uma autoridade baseada na assistência de Jesus que ele teria prometido. No entanto, em alguns momentos da história, parece que Jesus perde o controle desse caminho eclesial. De certa forma, já podemos ver essa queixa de Jesus no episódio do lava-pés, quando o evangelho evita contar a instituição da ceia e prefere insistir no seu significado: o lava-pés. E aí Jesus diz a Pedro: “Se não aceitas que te lave os pés, não terás parte comigo”. Agora, de novo, depois da pesca que finalmente pescou tantos peixes, Jesus ceia com os discípulos, mas o evangelho nos deixa com essas palavras misteriosas: “Ninguém perguntava quem era porque todos sabiam que era o Senhor”.

 Ninguém é dono de Jesus. Ninguém pode ter certeza de saber quem e como ele se apresenta. Sua presença permanece oferecida a nós, mas ao mesmo tempo, devemos estar abertos a uma busca que é permanente e nunca totalmente satisfeita.

A segunda parte do relato desse evangelho nos conta que depois de cear, Jesus pergunta a Pedro: tu me amas? Pedro responde: Eu gosto de você. E Jesus parece perguntar: Gosta mesmo? E Pedro, envergonhado de o ter negado durante a paixão e de não poder dizer que o ama, responde: você sabe tudo. Sabe que eu gosto de você. Gostar é  diferente do verbo amar que Jesus usou quando perguntou pela primeira vez. Seja como for, a cada vez que Pedro confessa que gosta dele, Jesus confirma: então tome conta de meus cordeiros, cuide de minhas ovelhas. Na Igreja, o ministério só tem razão a partir dessa relação com Jesus.

É a única vez no quarto evangelho que Jesus diz a Pedro: Segue-me. Isso significa que não se pode ser quem coordena, sem primeiro ser discípulo. E o texto parece dizer que, antes, Pedro não parecia tão preocupado com isso. O que isso diz para nós, hoje???

Cada um/uma de vocês é o/a discípulo/a amado/a, chamado à intimidade com o Ressuscitado no meio das lutas do povo, como aquela pesca à noite era a luta da sobrevivência para aqueles homens pobres. E nessa intimidade, somos convidados hoje a seguir Jesus no seu projeto de transformar o mundo no reino de Deus e nesse seguimento (Segue-me, disse Jesus a Pedro).

Ouçamos o que Jesus diz sobre cada um de nós: eu quero que ele, ela (cada um de nós) permaneça até que eu venha. Vamos sim permanecer nele. O seguimento no projeto e o permanecer na intimidade do seu amor será a alegria e a força de nossas lutas e de toda a nossa vida.

 

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Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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