A Trindade não está no céu. É preciso descobri-la no mundo.
Marcelo Barros
Neste domingo, a Igreja Católica e algumas das Igrejas históricas celebram a festa da Santíssima Trindade. No século IX, esta festa foi criada para reafirmar a fé da Igreja diante de grupos que discutiam o modo de expressar a fé. O dogma trinitário é muito mais antigo. Remonta aos primeiros concílios e respondem a questões que dividiam as Igrejas locais naqueles tempos. As formulações da fé explicadas pelos antigos pais alimentam até hoje a nossa espiritualidade. Para nós, tanto de grupos católicos tradicionais, como de comunidades eclesiais de base, é sempre alegria iniciar orações e celebrações em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E o sinal da cruz, marcado com as mãos na testa, no peito e nos ombros, liga a fé com a missão de seguir Jesus no serviço amoroso ao mundo.
No Brasil, os mais velhos de nós ainda recordam com saudade do 6º Encontro intereclesial das Cebs em Trindade (GO) em julho de 1986. Ali, as comunidades definiram: A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Ao insistir que Deus é comunhão, as Cebs propunham que nas Igrejas cristãs, se praticasse entre ministros/as e povo de Deus o mesmo modelo de relações que existem entre as pessoas da Trindade: perfeita igualdade e, ao mesmo tempo, distinção de funções.
Neste ano A, o texto do evangelho proclamado nas Igrejas é João 3, 16- 18. “Deus amou tanto o mundo que lhe entregou o seu Filho único”. Essa palavra que o quarto evangelho coloca na boca de Jesus sela o diálogo de Jesus com Nicodemos, o mestre da lei, sobre Deus e sobre a necessidade de nascer de novo para se viver em Deus. No tempo dos evangelhos, afirmar que Deus entregou o seu Filho ao mundo era usar uma linguagem sacrificial comum. Hoje, não devemos falar de que Deus precisou entregar seu filho à morte para, através do sacrifício de Jesus, se reconciliar com a humanidade. Temos de encontrar outra linguagem (não sacrificial) para expressar, seja o amor do Pai maternal que se comunica a nós através de Jesus, seja a disposição de Jesus de enfrentar a violência do sistema do mundo entregando-se a si mesmo. Como se ele decidisse: “Se alguém tem de morrer, que seja eu”.
Hoje, sabemos que nossa forma de falar de Deus é relativa, aproximativa e pobre. Quase na época em que surgiu essa festa, Mestre Eckart, espiritual alemão do século XIV, afirmava: “Tudo o que você faz e pensa sobre Deus, é mais você do que ele. Se absolutizar isso, você blasfema porque o que realmente Deus é, nem todos os mestres de Paris conseguem dizer. Se eu tivesse um Deus que pudesse ser compreendido por mim, não gostaria nunca de reconhecê-lo como meu Deus. Por isso, cale-se e não especule sobre ele. Não lhe ponha roupas de atributos e propriedades, mas aceite-o “sem ser propriedade sua”. Respeite-o como um ser superior a tudo e, ao mesmo tempo, como um Não Ser superior a tudo”. Essa palavra nos adverte contra qualquer tendência de querer explicar Deus.
A celebração de hoje nos convida não a definir Deus, não a repetir dogmas, e sim a nos sentir chamados a viver em Deus, como Deus é: comunhão. De fato, a cada ano, em muitas dioceses do Brasil, esse domingo é celebrado como “o dia das comunidades eclesiais de base”. Vivemos a comunhão com o mistério divino (da Trindade) à medida que tornamos a Igreja uma rede de comunidades locais, reunidas de forma igualitária no nome de Jesus, como ensaio do projeto do Pai e profecia do Espirito Santo.
Em Salvador da Bahia, um trabalho de amor e solidariedade com as pessoas mais pobres que vivem literalmente nas ruas os reúne em uma Igreja antiga do velho centro da cidade. Antes, essa Igreja, dedicada à Santíssima Trindade, estava abandonada. Atualmente serve de abrigo para a “comunidade da Terna Trindade”, animada por irmãos e irmãs consagrados, que fazem comunidade de vida com sofredores/as de rua e voluntários que moram com eles para testemunhar concretamente que Deus os ama e se revela em todo amor humano.
Nos Evangelhos descobrimos que se Jesus fez uma revolução foi a de transformar a visão de Deus que quase todas as religiões tinham e ainda muitos grupos têm. Jesus nos revelou Deus como paizinho que nos ama com amor de mãe e que, através de Jesus, seu Filho amado, nos dá o seu Espírito, presente e atuante em todo o universo e nas mais diversas tradições culturais e religiosas. É preciso que sejamos profetas dessa humanização de Deus. Não permitamos que imperadores do mundo como Trump ou imitadores seus como o desgovernante do Brasil usem o nome de Deus para legitimar o desamor e a violência. O Espírito Santo nos anima a reconhecê-lo em todo projeto de defesa da Vida e a viver a comunhão divina em todo ato e caminho de amor. “Deus é Amor. Quem vive o amor vive em Deus e Deus vive nele ou nela” (1 Jo 4, 16).