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A verdade escancarada: Deus saiu do armário

 

A verdade escancarada: Deus saiu do armário

 Marcelo Barros

Deus deve ter bom senso de humor. O problema é que, cada vez mais,  no mundo, ele encontra menos razão para achar graça em alguma coisa”. Essa afirmação de Woody Allen está em um número especial que, há alguns anos, a revista francesa Le Monde des Réligions publicou sobre o humor nas religiões. Além dos dervixes dançarinos da espiritualidade sufi, dos rabinos que, propositadamente, se embriagam na festa da Sinchat Torá, a alegria da lei e ainda em algumas manifestações de religiões populares, quase não se vê humor nas expressões religiosas tradicionais. Principalmente as formas mais oficiais das religiões abraâmicas parecem muito dominadas pela sisudez e pelo rigor.

Neste XXIV Domingo comum do ano C, o evangelho proposto é todo o capítulo 15 de Lucas. O contexto continua o mesmo do capítulo 14, tratando das refeições e de quem pode e quem não pode ter acesso às refeições de Deus. Para algumas correntes de espiritualidade, o próprio fato de Jesus dar tanta importância às refeições e à comida já parece estranho para os padrões religiosos. No entanto, os evangelistas todos testemunham que Jesus aceitava a companhia e o convívio de cobradores de impostos e de pessoas consideradas pecadoras. Por isso, os fariseus e religiosos o criticavam. Era boêmio demais para ser bom religioso e as companhias com as quais andava não depunham bem sobre ele.

Para as pessoas que o criticavam por isso, Jesus contou três parábolas. As duas primeiras formam um par, uma masculina, refere-se ao pastor de cem ovelhas que perde uma e sai em busca da que se perdeu. A outra, feminina fala da dona de casa que tem dez moedas e perde uma e busca a que perdeu. A conclusão é que assim se comporta Deus, em relação às pessoas: vai sempre em busca do que se desviou. Estas duas primeiras parábolas preparam a terceira que é a mais importante: a do pai que tem dois filhos e faz festa pela volta do filho que voltou.

Quando falam desse evangelho, padres e pastores falam em parábolas de conversão. Mas, como falar de conversão no caso de uma ovelha que se desgarra do rebanho ou de uma moeda que se perde da gaveta onde deveria estar? Mesmo na parábola do filho que volta e pede perdão ao pai, dificilmente, se pode falar em conversão interior. O evangelho não fala em conversão. O assunto que volta nas três histórias é a alegria. A alegria do pastor ao encontrar a ovelha perdida, a alegria da mulher ao achar a moeda e a alegria do pai com a volta do filho. São parábolas para explicar a alegria e a festa. Jesus age como se alguém o surpreendesse em lugar pouco recomendável e ele respondesse: Não sou só eu que estou aqui. Eu já vim porque descobri que o próprio Deus está aqui.

De fato, ao ouvir esse evangelho, em uma comunidade de jovens lavradoras, uma delas sussurrou para a amiga: “Gente, parece que o próprio Deus caiu na gandaia!”[1].

Com sua postura inesperadamente acolhedora em relação às pessoas consideradas perdidas pela religião e através dessas parábolas da misericórdia, de fato, Jesus evangeliza Deus. No sentido de tornar Deus uma boa notícia para um mundo excludente: Deus é só amor e só pode amar, acolher, perdoar e ressuscitar nossas relações feridas. Nunca, Deus tinha sido apresentado assim. No Nordeste, se diria: parece mãe de bandido que, seja como for, espera sempre que o filho volte para casa e volte para viver. É pura gratuidade e corresponde à Mãe que, no Catolicismo Popular do sertão nordestino, descrito por Ariano Suassuna, é a Compadecida. Esse é o Deus de Jesus: que sua imagem seja a de alguma nossa Senhora da piedade popular católica, ou de algum Orixá de culto afrodescendente. É o puro amor que Jesus nos revela.

Quem acompanha, hoje, a guerra midiática nas redes sociais, sabe que uma das mais importantes e eficientes fábricas de ódio operantes nas redes sociais são as  feitas por grupos religiosos, católicos e pentecostais, que disseminam a imagem de um Deus cruel que elimina inimigos e destrói as pessoas e grupos que não forem de acordo com os dogmas dos chefes religiosos que sequestraram Deus e se consideram seus donos. Falam o que  querem em seu nome e transformam Deus em instrumento do seu ódio à humanidade. É triste ver que ainda há bispos e pastores dispostos a votar em políticos assassinos, desde que apoiem os interesses moralistas de suas Igrejas. No tempo de Jesus, na época das comunidades de Lucas e ainda hoje há muitas pessoas e grupos religiosos que se comportam como o filho mais velho. O mundo produz muitos tipos de ódio. Deles, o mais perigoso é o religioso, porque é travestido de santidade e de pureza. Foi o que Jesus mais combateu. Martinho Lutero, o reformador, afirmava: “Deus prefere a blasfêmia do ímpio que é justo do que o aleluia do injusto”.

Essas parábolas do capítulo 15 de Lucas parecem ter com pano de fundo o capítulo 31 do profeta Jeremias. Se isso é verdade, elas nos trazem o anúncio de uma nova aliança entre Deus e a humanidade, aliança baseada na  nossa disponibilidade para acolher as pessoas e comunidades dispersas e reunir no amor o que somente no amor pode ser salvo.

 

 

 


 

 



[1] - A expressão “cair na gandaia” vem do espanhol (gandaya). No Brasil, ficou conhecida entre as pessoas na época do carnaval e de outras festas populares, no sentido de "cair na folia", festejar, comemorar; fugir da rotina do cotidiano e aproveitar determinado período de tempo para aproveitar a oportunidade. 

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Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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