XVIII Domingo comum C: Lc 12, 13- 21.
A vida como amor e projeto de comunhão
Nesse XVIII Domingo do tempo comum (do ano C) o evangelho lido nas comunidades é Lucas 12, 13 a 21.
Em nossos dias, a realidade política agrava a contradição entre os grupos cristãos que se inserem no projeto de uma humanidade justa e solidária e outros que vivem a fé como se a espiritualidade não tivesse nada a ver com a justiça ecossocial e a Paz. Além disso, na América Latina e em outros continentes, há políticos de extrema direita que instrumentalizam a religião para o seu projeto de poder. Isso faz com que esse texto que lemos hoje no evangelho possa ser mal interpretado por não poucos padres e pastores. O mais fácil é fazer leitura fundamentalista do texto e interpretar erradamente a resposta de Jesus ao rapaz que lhe pede para dizer ao irmão que reparta com ele a herança deixada pelo pai. Quando Jesus pergunta ao rapaz "Quem me fez juiz entre vocês para discutir essas questões de herança?", o pessoal interpreta como se a justiça social e a questão dos direitos das pessoas não interessassem a Jesus. Interpretação péssima e errônea.
O evangelista Lucas coloca Jesus dando o seu ensinamento a partir da provocação de alguém do meio do povo. Já vimos isso em Lc 10, 25 e 11, 45. Agora, alguém pede que Jesus sirva de juiz em uma questão de herança entre dois irmãos. No mundo de Jesus, era costume os rabinos religiosos resolverem questões como essa. Mas, Jesus se nega e vai à raiz do problema social.
Jesus se nega a tratar de uma questão de justiça no plano interpessoal, sem mostrar a injustiça estrutural do sistema do país. De alguma forma, a justiça entre os dois irmãos está ligada ao modo de organizar o mundo. Se a sociedade é fundamentada sobre a ambição e o egoísmo, considerados como direito à propriedade privada, não há possibilidade de justiça. Jesus se nega a entrar na defesa da propriedade privada, vivida como direito absoluto.
Na década de 1960, Dom Helder Camara insistia que o mundo nunca poderá ter paz, enquanto não se resolver o problema da desigualdade econômica. Em nossos dias, essa desigualdade se agravou duas ou três vezes mais do que na época de Dom Helder. O Papa Francisco afirmava: “Esse sistema mata!”
Uma das melhores heranças do Papa Francisco é a proposta de uma economia alternativa à do Capitalismo que tem sido chamada de Economia de Francisco e Clara. O Papa Francisco a propôs, ao convocar um encontro no Vaticano com jovens economistas de todo o mundo para repensar a Economia, a partir de outros pressupostos, que não sejam os da ambição e do lucro a qualquer custo. Atualmente, em todo o mundo, se espalham comissões e experiências de economias solidárias e de partilha.
No evangelho de hoje, Jesus deixa claro que o raciocínio da propriedade privada capitalista leva necessariamente à ambição e ao egoísmo. Ele conta uma parábola baseada em histórias que já apareciam nos livros da Sabedoria e quase se pode ler literalmente em Eclesiástico 11.
Nessa parábola, não se trata de um rico mau ou avarento. Não. Simplesmente, ele pensa no modelo que é, hoje, o normal no sistema capitalista. O homem diz: “meus frutos, meus cereais, meus celeiros, meus bens”. Hoje, os ricos continuam dizendo isso em um mundo no qual há um bilhão de pessoas que não têm o mínimo para viver com dignidade. No Brasil, poucas pessoas ou famílias possuem renda equivalente à renda de mais da metade de toda a população brasileira e isso é injustamente considerado como normal.
No Evangelho de Lucas, desde Lc 9,51 até Lc 19,28, durante dez capítulos, Jesus se dedica a formar os discípulos e as discípulas para a missão. Nesse capítulo, Jesus se empenha em mostrar que o discipulado que ele propõe não é possível sem que o discípulo ou discípula organize a sua vida a partir da partilha.
A parábola que ele conta se conclui pedindo que sejamos ricos não cada um para si mesmo/a, mas para Deus. Para a maioria das tradições espirituais, isso significa organizar a vida a partir de um projeto de partilha e de justiça que testemunhe o Amor Divino como fundamento de nossa vida.
A tradição bíblica ensina isso: “Quem é solidário com o próximo empresta a Deus” (Prov 19, 17 e Eclo 29, 8- 13). Isso deu o ditado popular: “Quem dá aos pobres, empresta a Deus!”. O problema do rico é que ele não se preocupa com os direitos dos trabalhadores que construíram os celeiros e produziram a produção, mas só se preocupa em “comer, beber e aproveitar ou se regalar com sua riqueza” (Lc 12,19). Não se propõe a partilhar. Só quer acumular e gastar consigo mesmo. Esse era o sistema que imperava nas cidades e foi fortalecido pelo império grego. Enquanto, no Evangelho, Lucas resgata a experiência do sistema do campo, das aldeias, onde a partilha, a ajuda mútua, os mutirões, a vida em comum... era a coluna mestra das relações sociais.
A preocupação do rico é gozar sozinho o que ele tem. Aí Deus condena e vem buscar a sua vida naquela mesma noite. E Jesus conclui a parábola dizendo: “Isso acontece com quem junta só para si e não para Deus. Juntar para Deus é repartir com os outros e viver a vida partilhando com os demais.
Em 1964, ano da ditadura militar no Brasil, o jovem Geraldo Vandré lançou a música:
Fica mal com Deus
Quem não sabe dar
Fica mal comigo
Quem não sabe amar
Pelo meu caminho vou
Vou como quem vai chegar
Quem quiser comigo ir
Tem que vir do amor
Tem que ter pra dar
Vida que não tem valor
Homem que não sabe dar
Deus que se descuide dele
O jeito a gente ajeita dele se acabar
Fica mal com Deus
Quem não sabe dar
Fica mal comigo
Quem não sabe amar