Blog Aqui vamos conversar, refletir e de certa forma conviver.

Ao completar 77 anos de vida

Minha colheita de 77 anos

            “Bendiga a minha vida à Ternura Divina, 

A seu nome, cante todo o meu ser, 

De seus favores e graças sem medida,

Jamais poderemos nos esquecer.

Por toda tua vida, de bens te sacia, 

Como a da águia, tua juventude se renova,

O Eterno Amor realiza sua justiça libertadora, 

 A quem é oprimido, liberta e promove”

               (Salmo 103 – tradução do livro Diálogos com o Amor). 

                  Nesta noite, ao dar graças a Deus por mais um ano de vida, tento passar na mente e no coração a memória deste ano, assim como as conquistas e vitórias de toda a minha vida. As graças recebidas são tantas que seria impossível enumerá-las. Tudo é mesmo graça. E eu me sinto frágil, impotente e muito aquém de tudo o que me é dado viver. Há momentos nos quais me lembro de um filme do Woody Allen: Dirigindo no escuro (2001). Conta a história de um diretor de cinema que não conseguia mais ser convidado a fazer nenhum filme e de repente um produtor o contrata para um grande filme. Mas, na véspera de começar as filmagens, o cara acorda cego. Depois de hesitar muito decide não deixar que percebam e dirige o filme sem ver nada. De certa forma, parece uma parábola de quantas vezes nos sentimos incapazes mas ao mesmo tempo tendo de tocar uma multidão de coisas que nos pedem e que confiam ao nosso cuidado. Sempre me lembro da palavra do apóstolo Paulo: “Eu me glorio de minhas fraquezas para que habite em mim a força de Cristo”.

Para mim, este ano de 2021 foi pesado e exigente como para a maioria das pessoas. Mesmo se não estamos mais vivendo a insegurança e a impotência dos meados de 2020, ninguém que tenha o mínimo de lucidez pode olhar a realidade atual sem perceber que estamos todos nós dirigindo no escuro, como no filme de Woody Allen. De todo modo, dou graças a Deus pela consolidação da Comunidade Bremen e do muito que o diálogo com a juventude, por mais exigente que seja, me proporciona a cada dia. 

Dou graças a Deus por termos resistido (e isso já é uma vitória) e mesmo sofrendo a perda de amigos e amigas, continuamos a luta. Para mim não foi fácil viver este ano quase sem viajar e tendo perdido os muitos encontros que antes eu assessorava. Sob certo ponto de vista, os cursos e encontros pela internet conseguiram atingir até mais gente, embora de forma muito mais fragmentada e precária. No ponto de vista da fé, neste ano, penso que aprofundei mais o jeito de viver a espiritualidade profética sem depender tanto de cultos e exercícios eclesiais. A diáspora não somente física a que fui submetido a tantos anos, mas mesmo a diáspora espiritual e litúrgica continua me pesando mas é o que Deus pede de mim. 

Neste ano, escrevi dois livros: O primeiro foi Profecia e Martírio na Caminhada que está com o CEBI e vamos ver se publicam. O segundo é o romance (o meu quinto romance) e tem como título: Vagalumes na escuridão. Estou ainda fazendo uma última revisão antes de manda-lo para a editora. O que tenho escrito todo dia é artigo e textos que me são pedidos. E agradeço a Deus ainda me dar inspiração para escrever (até aqui não tem me faltado). 

No dia 08 de julho, de madrugada, acordei tendo um infarto agudo do miocárdio. Esperei até de manhã e fui até o hospital da UNIMED onde fui logo atendido, diagnosticado e quase no mesmo dia operado e atendido. Não posso me queixar. Desde então, algo mudou e me sinto mais frágil, mas continuo a tentar ser independente e viver o dia de hoje. Amanhã, vamos ver. 

Há poucos dias, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) me deu o título de Doutor Honoris Causa. Consegui fazer desse evento um encontro da Universidade com os povos originários e o MST. Parece que consegui que a atenção não tenha ficado sobre mim e sim sobre essa missão da universidade. Agradeço às pessoas que colaboraram para isso, Márcio Tavares que lutou para que isso acontecesse, os professores Lusival Barcellos e Carlos André Cavalcanti que propuseram o título e meus amigos João Pedro Stédile, Ivone Gebara, Rose Fernandes e Gildo Aquino que me honraram com sua fala naquele evento. 

Ao dar graças a Deus por mais um ano de vida, me sinto um pouco como Jesus, diante do túmulo de Lázaro, ao dar graças a Deus por uma vitória da vida que ainda iria se manifestar (no caso, Lázaro ainda estava no túmulo). No meu caso, há muitas vitórias de Deus sobre a morte e doenças traiçoeiras. Há a mão de Deus me conduzindo por meio de curvas e túneis nem sempre fáceis de atravessar. Há imensa graça divina no pouco que consigo fazer em assessorias e ajudas às pastorais e aos movimentos  sociais, mas principalmente no tanto que tenho sempre aprendido nesse caminho e em tantas graças que recebo dos companheiros e companheiras de luta e de caminhada. 

No hemisfério sul, novembro é final de primavera. Mas, a primavera interior nunca se acaba. É sempre tempos de novas possibilidades e de novos começos. Um tempo de esperança para renascer. Nas regiões mais frias, a primavera nasce depois da quietude do inverno. A primavera nos lembra a nossa infância e me faz lembrar que o universo brota e vive em mim. E em mim, é o universo que está sempre mudando. 

A terra, mesmo agredida, respira sempre novas formas de vida. 

Quero escutar e acolher. Prestar atenção às sementes que se abrem

Ver as raízes que crescem fortes sob a terra. A erva verde que brota depois do frio do inverno.

Quero escutar e acolher. 

Os espinhos que dão flor e os ramos nus que se cobrem de brotos. 

As flores silvestres que, ao vento, dançam nas campinas.

Quero escutar, acolher e partilhar com meus irmãos e irmãs,

Essa ternura da vida que sempre teima em renascer.  

Há uma espécie de gravidez da vida fora e dentro de nós,

Os ipês amarelos e vermelhos em meio ao asfalto da cidade, 

Há flores que resistem e insistem mesmo em meio à secura, 

Como precisamos ser na ternura e firmeza, forte resistência,

em meio às durezas e aos ataques bolsonarianos  da vida.

Preciso mais de alguns anos para, com meus irmãos e irmãs, 

continuar a luta para que, no mundo e em nós, nunca desistamos da primavera 

e quero escutar e acolher esses sinais de resistência, 

para dar mais amor e ternura a essa luta divina. Amém. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

Informações