Apagão litúrgico no evangelho e em nossa realidade
(Meditação para essa quinta-feira santa)
Para esta quinta-feira santa, em meio à quarentena, apagão litúrgico é a expressão que Reginaldo Veloso usou em seu comentário, mandado aos amigos e espalhado pela internet. Reginaldo se refere ao momento atual no qual as Igrejas não podem fazer celebrações. Ele e muitos comentadores dizem que isso pode ser um momento de graça no qual somos convidados a redescobrir novas formas de celebrar o memorial do Senhor, formas mais leigas e mais domésticas. Além do fato de sermos desafiados a redescobrir na própria tradição bíblica formas de celebração nas casas, de forma mais simples e sem dependência de ministros ordenados, o momento agora exige ainda mais. Pede que passemos da liturgia ao amor solidário e ao serviço aos outros, do qual a liturgia deve ser sinal. Nessa visão, quem está hoje, praticando o lava-pés é a multidão de médicos e enfermeiros que arriscam a vida cuidando dos doentes. É o grupo de voluntários que organizam almoço para os pobres nas ruas. São todas as pessoas que se colocam a serviço dos outros e no testemunho do projeto divino do amor e da justiça.
Reginaldo tem razão ao denunciar a separação que existe hoje entre a liturgia e a realidade social. No entanto, esse problema parece ter sido muito antigo. Já existia no final do século I, quando a comunidade do Discípulo Amado escreveu o quarto evangelho. Provavelmente, para romper com esse divórcio entre celebração e vida que já tomava conta da Igreja, o evangelho de João evita qualquer alusão à instituição da eucaristia. No lugar, conta o episódio do lava-pés. É verdade que, antes, no capítulo 6, o evangelho traz um discurso de Jesus sobre o pão da vida. Mas, também essas palavras de Jesus contêm forte crítica a um sacramentalismo que se prende ao sinal e não vai até a adesão a Jesus e ao seu projeto. Ali, Jesus tinha dito: Vocês me procuram porque comeram dos pães e ficaram saciados. E em outro momento: Vão além dos sinais (dos sacramentos). “Eu sou o pão da vida” pode ser lido como “O pão da vida sou Eu, a minha pessoa, a minha palavra, o projeto divino que anuncio e não um rito ao qual vocês se prendem e não aceitam ir além dele até a realidade que ele deve indicar: partilha e comunhão na luta pela vida”.
Nos tempos da primeira e segunda geração cristã, os discípulos e discípulas de Jesus se uniram em comunidades de entreajuda e solidariedade. Por isso, tomaram das cidades gregas o nome das assembleias de seus cidadãos: Igrejas. A diferença com as igrejas (assembleias) do império era que, nas assembleias cristãs, todos eram iguais e procuravam ter tudo em comum (At 2, 32 ss). Celebravam a ceia de Jesus como memorial da morte e ressurreição de Jesus. O modo de fazer esse memorial não era um rito sacrificial. Era a partilha do alimento e proposta de comunhão como forma de viver. A ceia não tinha ainda um ritual consagrado. Fazia-se nas casas, como ceia de amor solidário (é a segunda leitura de hoje: 1 Cor 11, 23- 26).
O império romano era tolerante para com as mais diversas religiões, mas, pela lei Julia (de 44) não permitia associações de solidariedade entre os pobres. E as sinagogas e Igrejas eram isso. Revolucionavam o império a partir de baixo, das assembleias de base que proclamavam Jesus como Kyrios, Soter (Senhor e Libertador) e diziam fazer essa ceia “enquanto esperamos a sua parusia, isso é, sua vinda”. Essa não conformidade com o sistema dava ao cristianismo uma fisionomia socialista. O livro dos Atos retrata isso no retrato idealizado dos primeiros cristãos: tinham tudo em comum, repartiam o que tinham, viviam em comunidade. A cada um era dado, conforme sua necessidade (At 2, 42- 47 e 4, 32- 37).
Infelizmente, para ser aceita pelo Império, a Igreja acabou renunciando a essa sua dimensão transformadora (revolucionária). Ao querer converter o império romano, perdeu sua força profética e muitas vezes foi por ele absorvida e corrompida. Hoje, para retomarmos o espírito original da Páscoa, temos de refazer essa dimensão da fé bíblica, como os bispos latino-americanos definiram na Conferência de Medellín (1968): “libertadora de toda humanidade e de cada ser humano por inteiro”(Med 5, 15). Uma Igreja pascal significa isso: uma Igreja que, pelo seu modo de ser e de agir, se torne fermento e sacramento de uma sociedade nova, de acordo com o projeto original de Deus para o mundo.
A celebração dessa quinta-feira santa nos diz como viver esse serviço à humanidade. O lava-pés prefigura a cruz. É sinal de serviço amoroso a todos, expresso na cruz. Tanto em um momento como em outro, Jesus se despoja das vestes e se doa a um serviço que une afeto cheio de ternura e, ao mesmo tempo, profecia social de total inversão das categorias do mundo. Ao morrer na cruz, ele nos entrega o Espírito.