A Cruz, entre a parada gay e a Igreja
Na recente Parada Gay de São Paulo, no domingo 07 de junho, a atriz Viviane Bebeloni, transexual, desfilou presa a uma cruz. Ela afirmou que fazia isso como forma de protesto pelo que a população GLBT sofre de preconceitos e exclusão social. Desde que isso aconteceu, o assunto tem sido comentado nos meios de comunicação e por pessoas de alguns segmentos religiosos. Uma nota assinada por bispos católicos de São Paulo condena o fato e protesta veementemente. Chega a pedir que a autoridade pública intervenha contra esse tipo de evento. Segundo eles, a parada gay teria desrespeitado a religião católica, ao usar o seu símbolo mais importante: a cruz. No dia seguinte, independente da nota dos bispos, circulavam pela internet ameaças de morte à atriz. Chegaram a divulgar a imagem de um travesti morto e de braços abertos como em cruz, afirmando ser Viviane e que aquilo teria sido castigo de Deus. É pena que ainda haja cristãos que possam pensar tal coisa de um Deus que é só amor e misericórdia. De fato, a tal fotografia espalhada na rede era de um travesti cearense, encontrado morto em abril de 2014. Viviane tem sido ameaçada de morte por telefone, mas está viva.
Na própria Igreja, mesmo sem vir a público, outros ministros e a maioria dos agentes das pastorais sociais pensam diferentemente. O padre Júlio Lancellotti, que trabalha com os sofredores de rua em São Paulo, declarou que ficou emocionado, ao ver pela televisão, a cena da atriz pregada na cruz. Ele viu ali o próprio Cristo crucificado. Outros lamentaram ironicamente que os bispos que assinaram a nota tenham esquecido de pedir a assinatura de políticos e pastores neopentecostais conhecidos por suas posições rancorosas e fundamentalistas, já que defendem o mesmo tipo de pensamento e postura.
A justiça exige, ao menos, o direito de defesa a quem é acusado, antes de condená-lo sem escutar. De fato, a atriz em questão, declarou na televisão que se prendeu a uma cruz “para representar a dor e a humilhação que os homossexuais e população LGBT sofrem todos os dias” (declaração na internet e na TV Bee). Espiritualmente, quando um fato pode ter ao menos duas interpretações (uma favorável e outra negativa), um cristão deveria sempre optar pela mais ecumênica e amorosa.
Sem dúvida, os bispos que assinaram a nota querem defender a fé cristã e os símbolos do Cristianismo. Apesar das aparências, certamente eles não se sentem donos dos símbolos sagrados da fé. Sabem que a Cruz é símbolo de todo o Cristianismo. Em São Paulo, ortodoxos e cristãos de Igrejas evangélicas históricas, todos usam a cruz. No entanto, sabem que um símbolo da fé não é grife ou marca comercial patenteada por alguma empresa. Se fosse assim, em breve, qualquer pessoa para usar uma cruz no pescoço teria de pedir permissão ao bispo.
É importante não esquecer que, antes de ser um símbolo cristão, a cruz foi um instrumento de terrorismo político do Império Romano. Antes e depois de Jesus muitos milhares de pessoas foram torturadas por meio da cruz. E até hoje, em alguns lugares do mundo, o chamado pau de arara, instrumento de tortura usado pelos órgãos de repressão da ditadura militar brasileira, é uma espécie de cruz. Não podemos esquecer esse fato, sob pena de passar a ideia de que só Jesus morreu na cruz, quando de fato ele foi morto como muitos outros que ousaram enfrentar o império. Império que hoje mostra seu poder aterrorizante de vários modos no mundo, contra os migrantes pobres e nas ameaças contra a pobre Grécia.
Os bispos que assinaram a nota contra o uso da cruz na parada gay são pastores esclarecidos. O povo de Deus tem direito de esperar deles que não ajam por preconceito contra transexuais e nem por homofobia. Ainda há pessoas de fé e mesmo bispos que, infelizmente, separam o sagrado do profano. Assim, se escandalizam pelo fato de um transexual ter se identificado com Jesus na cruz para expressar a opressão que sofre todos os dias. Nesses dias, cristãos tradicionais criticaram o fato de que, na Bolívia, o presidente Evo Morales tenha presenteado o papa com um crucifixo, cuja cruz é formada por uma foice e uma enxada. Viram nesse fato uma politização da cruz. No entanto, não sentiam nenhum desrespeito à cruz quando generais da ditadura militar usavam a cruz em suas cerimônias de posse. Até pouco tempo, salas de tribunal e o Congresso Nacional tinham uma cruz na parede. Será que Jesus não se sente mais ofendido com certos julgamentos que temos presenciado no Judiciário brasileiro ou com um Congresso que legisla tantas vezes contra os pobres do que com um transexual que tenta chamar atenção para a sua dor? E a cruz continua pregada nas paredes de bancos que ganham 400% de lucro ao ano e exploram de várias formas os pobres.
Esse tipo de conflito nos faz compreender melhor porque Jesus foi condenado pelo pretório (poder político) e pelo sinédrio (poder religioso do seu tempo). Conforme os evangelhos, ele foi acusado de “blasfemar contra o templo”. O templo era o símbolo mais importante do Judaísmo da época e ele o desrespeitou. Ele afirmou: “Podem destruir esse templo e eu o reedificarei em três dias” O evangelho diz que “ele falava, não da construção de pedra, mas do templo do seu corpo” (João 2, 13 – 21). Sem dúvida, esses bispos são discípulos de Jesus e devem concordar com ele que, de fato, o transexual em questão, é como pessoa, um símbolo muito mais sagrado para a Igreja do que a cruz.