Herança do amor solidário
Há um ano, após uma doença inesperada e muito virulenta, vimos partir para Deus o presidente Hugo Chávez. No Brasil, a imensa maioria dos jornais e revistas o apresentaram como matéria de capa, mesmo se, de todos os modos possíveis, procuraram denegrir a figura do presidente Chávez. Na Venezuela, por uma semana inteira, da manhã à noite, multidões formaram filas para lhe prestar homenagem e passar diante do seu corpo. Em sua imensa maioria, vindas de todo o país, eram pessoas pobres que queriam manifestar sua tristeza e agradecer pessoalmente ao homem que reacendeu na Venezuela a chama do bolivarianismo e restituiu ao seu povo a dignidade de ser o berço de uma nova integração latino-americana.
Intelectuais e militantes sociais de todo o mundo reconhecem: no final do século XX, em um momento histórico, no qual o Socialismo estava desacreditado pela corrupção e ineficiência dos governos ditos socialistas de alguns países da Europa, Hugo Chávez soube restituir a dignidade da política como um ato de amor solidário e mostrou ao mundo que é possível um socialismo de tipo novo, democrático e a partir das culturas oprimidas.
Durante o Fórum Social Mundial de Caracas, em 2007, estava eu junto com Dom Tomás Balduíno em uma conversa com a presidência da Conferência Nacional dos Religiosos da Venezuela. E Dom Tomás perguntou ao padre, presidente da conferência, o que os religiosos pensavam de Hugo Chávez. O religioso respondeu: “Todos nós reconhecemos que, pela primeira vez, na Venezuela, temos um governo que se preocupa com os mais pobres e vive para servi-los. Mas, o presidente se une a Fidel Castro e não respeita a liderança da Igreja Católica no país”. Saímos daquele encontro lamentando que, ao invés de unir-se a todas as forças da sociedade no serviço aos mais pobres, grande parte da hierarquia católica ainda se mantinha presa à tentação do poder e do prestígio.
A ONU e organismos internacionais como a FAO (Organização para a Agricultura e Alimentação da ONU) reconhecem que, de todos os países latino-americanos, a Venezuela foi o que mais conseguiu diminuir a desigualdade social. Superou totalmente o analfabetismo e avançou muito no plano da saúde pública. Sem dúvida, há muitos desafios a vencer. Nesses dias, o governo e o povo da Venezuela enfrentam um ataque violento por parte de alguns setores da elite do país que perderam privilégios e são apoiados economicamente pelo governo norte-americano. Os próprios meios de comunicação que não se cansam em denegrir os governos populares latino-americanos mostram entrevistas com estudantes que fazem protestos na Venezuela. E esses jovens declaram que o fazem para retomar seus direitos de ir estudar nos Estados Unidos e comprar os produtos de consumo que melhor lhes aprouver. De fato, a democratização dos meios econômicos não tem facilitado isso para uma pequena elite, a custa da maioria.
No decorrer dos tempos, muitas vezes, as Igrejas e religiões se posicionaram do lado dos poderosos que podiam ajuda-las e foram contrárias a qualquer projeto social e político transformador. Atualmente, cada vez mais as pessoas que têm fé em Deus ou buscam viver uma espiritualidade humana sabem: a justiça social e a realização dos direitos humanos, não só individuais, mas dos grupos e comunidades constituem uma base fundamental para a realização do projeto divino no mundo. Paulo dizia que a nossa fé deve levar à realização da justiça (Carta aos romanos) e que “foi para que sejamos verdadeiramente livres que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1).