Viver, em Deus, como se fosse sem Deus
Em Londres, quem passa pelo pórtico da Catedral anglicana de Westminster, verá em meio às imagens de mártires do século XXI a estátua de um pastor luterano. Para celebrar o ano 2000, a Igreja Anglicana colocou nas portas da Catedral em Londres figuras de vários mártires do século XX. Ali se veem não cristãos como Gandhi e cristãos de várias Igrejas que os anglicanos reconhecem como santos. Ali estão homenageados o bispo católico Dom Oscar Romero, o pastor batista Martin-Luther King e, entre os dois, o teólogo e pastor luterano Dietrich Bonhoeffer, fuzilado em um campo de concentração nazista.
Nessa semana, no dia 09 de abril, completaram-se 70 anos do martírio do pastor Bonhoeffer. No entanto, a sua mensagem profética continua atual e provoca admiração no mundo inteiro. Pelo seu modo de viver e por seus escritos, ele ensinou uma espiritualidade que une fé e política. Para ele, a fé cristã exige inserção na realidade social, assim como Jesus entrou profundamente nos problemas da sociedade do seu tempo. Por isso, Bonhoeffer propôs que as Igrejas reagissem à injustiça. Os pastores deveriam denunciar a iniquidade do Nazismo e de todo regime político que negue a dignidade e a liberdade dos filhos e filhas de Deus.
Ele era um homem de oração cotidiana, mas, afirmava: “É um insulto a Deus cantar ofícios litúrgicos, enquanto as bombas caem sobre as cidades e muitas pessoas morrem em campos de concentração”. “Para quem é cristão, não basta evitar o mal ou dele fugir. É preciso combatê-lo”. “Nenhuma guerra é justa. Toda guerra é opressora e iníqua”. Na Alemanha, as Igrejas se dividiram. A maioria aceitou colocar ao lado do altar a bandeira com a suástica nazista. Muitas despediram pastores de sangue judeu e algumas chegaram a colaborar com o regime. Bonhoeffer liderou o grupo das Igrejas que ocultavam fugitivos e colaboravam com a resistência. Nesse contexto, o pastor Bonhoeffer decidiu participar de um complô para assassinar Hitler e assim acabar com a guerra. O plano fracassou e ele foi preso. Afirmou que fez isso não por motivações políticas, mas em nome da fé e como testemunha do Deus que Jesus anunciou nos evangelhos. Foi morto no 09 de abril de 1945.
Na América Latina, todos consideram o pastor Bonhoeffer um dos grandes pioneiros e patronos da Teologia da Libertação. Livros seus como “Ética”, “Vida Comunitária” e “Seguir Jesus” marcaram gerações. No campo de concentração, enquanto esperava a morte, escreveu suas cartas da prisão que estão reunidas no livro “Resistência e Submissão”, hoje, um clássico da literatura cristã.
Em várias cartas, Bonhoeffer coloca a seguinte pergunta: “Como falar de Deus em um mundo no qual Deus não é reconhecido? Antigamente, os cristãos tentavam converter os descrentes a aderir à fé. No mundo contemporâneo, a maioria da humanidade não sente necessidade de religião. A única forma correta de falar de Deus aos que não creem é através do testemunho pessoal, da amorosidade e do modo coerente de viver a ética e a justiça. Por isso, o pastor Bonhoeffer propõe que as pessoas que têm fé vivam profundamente a intimidade com Deus mas de forma a respeitar a sociedade que tem sua autonomia e não precisa de um Deus pai para lhe dizer como deve se conduzir. Os cristãos devem viver mergulhados em Deus, mas inseridos no mundo e como cidadãos iguais aos outros, “como se Deus não existisse”. Ele atualizou essa expressão de um jurista cristão do século XVII para fundamentar a compreensão cristã de uma sociedade laical e pluralista que não pode ceder a fundamentalismos religiosos. Nenhuma Igreja ou religião tem direito de impor a um povo ou nação suas leis próprias. Não deve fazer lobbys para que a sociedade respeite leis e princípios que, embora possam ser válidos para toda a humanidade, são baseadas em crenças de uma ou outra tradição. Tomara que, hoje, nossos congressistas pentecostais ou de qualquer outra tradição religiosa tenham o bom senso de seguir esse conselho do pastor Bonhoeffer: viver em Deus, como se fosse sem Deus.