Hoje, a Igreja Católica celebra a festa do Corpo e Sangue de Cristo. Acho ruim a própria designação. Podiam ter chamado "festa da eucaristia" ou melhor ainda "a Festa da Ceia". De fato, surgiu na Idade Média, século XIII, no contexto da luta contra movimentos dissidentes na Igreja que eles chamavam de heresias (erros). E nasceu para acentuar (a gente poderia dizer: impor) a fé católica na presença real de Jesus na hóstia... É dia de procissão eucarística e bênção do Santíssimo... E até hoje, em uma Igreja que deveria ter superado essa visão de uma Igreja de massa, continuam a acontecer "as torcidas de Deus" em campos de futebol e as procissões de Cristandade em plenas ruas de nossas cidades. Quando eu era menino, adorava ver aquele cortejo de belas roupas, de campainhas tocando, de turíbulos fumegando e de ruas ornamentadas e embelezadas para a passagem da procissão. Sinto até saudades daquele tempo e daquelas cerimônias, mas minha fé crítica me pergunta o que isso tem a ver com a proposta de Jesus no evangelho sobre a ceia que ele fez com os discípulos e sobre o que ele mandou a gente retomar e perpetuar.
Eis o artigo que mandei à imprensa nessa semana:
O sabor do pão repartido
Em todas as culturas os momentos fortes de alegria e união se celebram com uma refeição ou algum alimento repartido. Quase todas as tradições espirituais têm uma partilha de comida como sinal de comunhão. Para as Igrejas cristãs, a ceia de Jesus é o sinal de sua presença em nós e entre nós. Desde a Idade Média, anualmente, a Igreja Católica dedica uma festa à Eucaristia. Nesse ano, a festa do Corpo e Sangue de Cristo se realiza nessa quinta feira. Quando foi criada, a intenção era fortalecer nos fieis a devoção à presença de Jesus na eucaristia. Atualmente, ela contém duas dimensões importantes para a fé:
1o – a importância do corpo. Ao adorar o corpo de Cristo, somos chamados a perceber que somos templos do Espirito e o nosso corpo merece cuidado e todo o respeito à sua dignidade sagrada.
2o – ao fazer do alimento um sinal de sua presença em nós e entre nós, Jesus quis dar ao mundo uma profecia do estilo de vida que devemos assumir: uma vida partilhada.
De fato, todas as Igrejas chamam esse evento de “comunhão”. Esse termo evoca uma “comum união”, mas pode também vir da expressão latina “comum múnus”. Comungar o múnus é assumir o peso da vida, durezas e sofrimentos que cada irmão e irmã carrega.
Conforme o testemunho do Novo Testamento, no primeiro século, as comunidades cristãs realizavam a ceia de Jesus nas casas uns dos outros, como expressão de uma vida partilhada. Ao repartir o pão, a comunidade fazia memória da doação que Jesus fez da sua vida e dava um sinal de que Deus quer que toda humanidade viva uma economia de partilha e de solidariedade. Durante os séculos, ao se inserir em cada cultura, as Igrejas fizeram da ceia de Jesus um culto mais formal. Pouco a pouco, a reunião que, no início, era mais simples e convivial, se tornou parecida com os cultos de outras religiões antigas. Os serviços de coordenação tomaram uma dimensão sacerdotal, como nos cultos das antigas religiões. A teologia passou a explicar a ceia como atualização do sacrifício da Cruz. Atualmente, essa linguagem do sacrifício deveria ser revista para que ninguém pense que Deus Pai precisaria da morte do seu próprio filho para salvar o mundo e nos reconciliar consigo. Não podemos negar o valor da história e nem reduzir o sentido mais profundo do mistério que celebramos. No entanto, ao dar graças a Deus por sua presença em nós, em cada eucaristia, fazemos a memória de Jesus não apenas em repetir suas palavras, mas em tomar o mesmo caminho dele, caminho de amor, doação aos outros e serviço. Por isso, temos de encontrar formas mais expressivas para ligar de modo mais profundo a eucaristia que celebramos com a realidade que vivemos e com o caminho que a sociedade toma.
Também precisamos unir esse sacramento da unidade com a comunhão com o universo, a terra, as águas, as plantas e os animais. Fazer de tudo uma comunhão única e total.
Precisamos reencontrar formas de celebrar mais simples e conviviais. A ceia de Jesus deve manifestar a dimensão carinhosa que o evangelho de João mostra que o Mestre revelou aos discípulos que ceavam com ele na noite da Páscoa. Todas as orações antigas da Igreja e até hoje a primeira oração eucarística do Missal Romano lembram que, na missa, os fieis participam da ação de graças ficando de pé, em redor do altar.
Em 2004, o papa João Paulo II escrevia: “A eucaristia não é somente expressão de comunhão na vida da Igreja. É também projeto de solidariedade da comunidade cristã com toda a humanidade. Na celebração eucarística, a Igreja renova continuamente a sua consciência de ser “sinal e instrumento” não somente da íntima união com Deus, mas também da unidade de todo o gênero humano” (Carta apostólica Mane Nobiscum, Domine, 17).
No século IV, ao falar aos cristãos batizados na noite da Páscoa, o bispo Santo Agostinho afirmava: “O pão da eucaristia representa o que vocês são: o corpo de Cristo, ou seja, a sua presença transformadora para o mundo. Então, se vocês tiverem recebido bem o alimento que é o próprio Cristo que se doa a nós, vocês se tornarão isso que vocês receberam. Vocês são o que vocês receberam”.