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As pequenas transfigurações de cada dia.

As pequenas e grandes transfigurações da nossa vida

              Desde minha juventude, a festa da transfiguração de Jesus me toca muito de perto. Nos primeiros tempos, era só deslumbramento com a beleza da cena: Jesus envolto de luz, tendo ao seu lado Moisés e Elias como testemunhas da aliança divina e a voz do Pai revelando o seu amor como alguém diz a outro/a na intimidade: eu te amo. E eu me sentia como Pedro, Tiago e João, para quem Jesus não fecha a porta da sua intimidade e deixa que possam ver como que a nudez mais profunda da sua alma. 

Na teologia aprendi que a transfiguração podia nem ser em si um fato histórico e sim uma visão do Cristo ressuscitado transposta para o momento no qual ele anunciou a Cruz e queria fortalecer os discípulos diante do escândalo da cruz. Em tempos mais recentes, descobri que não era só isso. Não era só fortalecer previamente os discípulos para ajuda-los a enfrentar a crise da paixão e da cruz. 

De fato, o contexto dessa cena é que Jesus tinha acabado de constatar que a sua missão na Galileia havia fracassado e ele era rejeitado pelo pessoal das cidades. Entre os próprios discípulos, ninguém compreende nem acolhe o seu projeto. Então ele tom consigo os três discípulos mais claramente identificados com uma Igreja judaica e uma esperança messiânica de tipo popular. Conforme Marcos conta, enquanto eles estão no monte com Jesus, embaixo da montanha, os outros discípulos discutem com os escribas (professores da Lei) e não podem curar um menino surdo-mudo que um pai, pobre e angustiado veio pedir que curassem (Mc 9, 14 ss). 

Na transfiguração  é aquele Jesus que se revela a eles como pobre, impotente e candidato a morrer na cruz que se mostra confirmado pela voz do Pai e pela presença de Moisés e Elias. Moisés e Elias também foram profetas fracassados. Moisés ao ver o povo adorar o bezerro de ouro e a Bíblia diz que ele quebrou as tábuas da lei. Elias, fugindo para não morrer, isolado no deserto, pedia a Deus que retirasse a sua vida. São esses dois que aparecem com Jesus. 

Essa é a experiência da profecia e do projeto divino: transfigurar em força nova o que para o mundo é fracasso ou é vergonha. E essa revelação nova vem na intimidade. De fato, quanto mais importante me sinto, menos capaz de abrir minha intimidade com outra pessoa e revelar algo em mim que prefiro esconder. Quanto mais simples e pequeno me sinto, mais se torna possível abrir essa intimidade. 

Os discípulos não percebem isso e continuam não entendendo.  Por estar ainda muito preso à cultura religiosa, Pedro propõe construir três tendas, como era costume na festa litúrgica das Tendas. Queria ficar ali no monte em uma espécie de êxtase carismático. Não lhes importavam os outros do grupo lá embaixo em conflito com os religiosos e incapazes de curar. 

Jesus os levou para o monte afim de lhes revelar qual era o projeto divino. Que carinho e cuidado com seus amigos mais íntimos. Ali, aos três discípulos renitentes e teimosos em permanecer em uma religião ligada a milagres e ao poder, Deus declara: Este é o meu Filho amado. Escutem-no. E pronto. Assim, Deus confirma e revalida a palavra que Jesus tinha dito sobre o caminho da cruz como sendo o único caminho necessário de fé e de missão que ele aceita viver.

O Cristianismo tradicional interpretou isso no sentido sacrificial. Jesus precisava morrer para cumprir um sacrifício oferecido a Deus. Isso significa que não se conseguiu sair do plano da religião tradicional e se substituiu simplesmente o Judaísmo rabínico do templo e da sinagoga pelo Cristianismo das catedrais e do direito canônico. A transfiguração de Jesus propõe outro caminho de fé. Não este da religião sacrificial e cultual e sim o da profecia a partir do serviço humilde e da doação inserida. 

Outro dia, li em algum lugar que a cena da transfiguração é o único lugar do evangelho no qual Jesus parece totalmente feliz e satisfeito. Será? De todo modo é bom Jesus saborear a alegria da intimidade com os amigos mais próximos como experiência mística. Será que a gente vive algo assim? Um momento íntimo com alguém e que é iluminado pela aprovação cúmplice e subversiva do Pai de amor? Que alegria aprender de Jesus a sentir falta disso. E me perguntar: será que tenho alguém com o qual posso partilhar coisas mais íntimas e possibilito que alguém conte comigo nessa intimidade ou será que legitimo um modo de ser no mundo onde não existe ou não se valoriza essa experiência de intimidades transfiguradas?

Como o apóstolo Paulo escreveu: “Ele transformará os nossos frágeis corpos mortais para serem semelhantes ao seu corpo glorioso” (Fl 3, 21). Hoje, medito que só quando abrimos nosso coração e nossa vida a esse teor de intimidade humana podemos atingir a intimidade de Deus no cuidado uns dos outros e da mãe Terra e no tratamento das chagas dolorosas que ferem a vida humana hoje.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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