Nesse 5o domingo da Páscoa, o trecho do evangelho lido nas comunidades (João 15, 1- 8) é tirado do discurso que o evangelho coloca na boca de Jesus depois de ter ceado com os discípulos e discípulas. É uma espécie de palavra de despedida e, ao mesmo tempo, um testamento dele para nós. Muitos textos da Bíblia usam a alegoria da videira para falar da relação de Deus com o seu povo. Pessoalmente nasci e sempre vivi em uma cultura que não tem videira e só conheci um pé de uva quando já era grande. Mas, escutei amigos europeus contarem que seus pais tinham uma videira na porta de casa e se relacionavam com ela como alguém da família. Também sei que uma linha do Xamanismo anima as pessoas a adotarem uma árvore e conviverem com ela como em um relacionamento pessoal próprio. Na Bíblia, em vários textos, o próprio Deus diz que plantou Israel na sua terra, como um agricultor planta e cultiva uma videira. Assim Deus cuidou de Israel, mas quando chegou na hora da colheita, a videira que era Israel só produziu uvas amargas ou não deu os frutos que deveria dar. (Ver Isaías 5 e Salmo 80). No evangelho, em uma conversa íntima com os discípulos e discípulas, Jesus diz: "A verdadeira videira sou Eu e vocês são os ramos". Ao se expressar assim, Jesus deslegitima a sinagoga rabínica e qualquer lei religiosa que aprisiona as pessoas. Se ele e só ele é a verdadeira videira, as outras pessoas e instituições que se colocavam como videiras são falsas, videiras que não produzem frutos... Historicamente, ao lembrar essas palavras de Jesus, a comunidade do 4o evangelho retoma o que Jesus já havia dito em outros momentos. Não adianta procurar no templo, o que só ele, Jesus pode dar. Só ele tem água que mana para a vida eterna, disse à samaritana. Só ele é pão da vida, disse para a comunidade aprisionada à lei e às regras cultuais. Só ele é a luz da vida, só ele é o pastor, só ele é a videira... Em geral, as pessoas dizem sim, é claro, mas na prática, criam mediações e instituições que acabam tomando o lugar de Jesus. Nesse ponto, a comunidade de João chega a se opor às chamadas "comunidades apostólicas" que se organizavam a partir dos ministros que se diziam sucessores dos apóstolos. O evangelho de João nunca usa o termo apóstolo e nele Jesus diz a toda a comunidade: "Vocês são os ramos, todos iguais e sem distinção e o importante é que sejam ligados visceralmente ao tronco que sou eu e ao Pai que é o agricultor".
O que ele pede é "permaneçam em mim". Os outros evangelhos diziam: Sigam-me. O evangelho de João vai mais além. Não basta seguir. Tem de permanecer não apenas com ele, mas nele. Não é ele que está em cada um de nós. Somos nós que estamos nele e vivemos nele. Mas, para isso, Deus faz como o agricultor faz com a videira. Os ramos imprestáveis joga fora para queimar. Quem se alimenta com o pão de Jesus, a palavra, a eucaristia e a comunidade de fé e esse alimento não o/a leva a se tornar pão para os outros, se torna ramo que não dá fruto e será automaticamente (por si mesmo) cortado da videira que é Jesus.
Os ramos que dão fruto, Deus poda para que possam dar mais fruto ainda. O texto grego faz um jogo de palavras entre podar(no grego airô) e purificar (kathairein). Pessoalmente, penso que já vivi situações nas quais depois pude perceber que se tratava de uma poda divina (uma poda feita por Deus). Muitas vezes, as situações são as reais da vida e problemas provocados pelas relações humanas, pelos conflitos da história, mas Deus se revela no meio da história e vai nos podando, nos purificando. Por exemplo, penso que, quando uma pessoa inocente é condenada por um crime que não praticou, esse mal não tem nada a ver com Deus e Deus nunca quereria que isso ocorresse. No entanto, na hora em que a pessoa permanece fiel ao seu projeto inicial e se mantém firme, aí sim Deus atua e lhe dá uma força espiritual que vai podando e purificando o seu espírito para conformá-lo com Jesus e o seu Espírito.
Peço a graça de acolher e saber viver e aproveitar as podas divinas na minha vida e na minha missão. Quando, uma vez ou outra, me acontece de ser dispensado de trabalhos que tinham me pedido, pelo fato de que eu tomo posição pelo evangelho e contra as conveniências do poder eclesiástico, ainda tenho em mim a tendência de ficar triste e não deveria. Jesus diz claramente: Alegrai-vos e exultai, porque desse mesmo modo, eles trataram os profetas que viveram antes de vós (Mt 5, 12).
Ainda tenho de aprender isso. Ainda tenho de acolher as podas divinas, tanto na minha vida pessoal como principalmente no campo social e político. Os partidos e organizações sociais de esquerda sabem que no momento atual, sofrem o acirramento de uma desigual luta de classes e do aumento de uma onda de ódio vinda de uma elite azeda que não aceita ceder nem as migalhas de seus privilégios. Sabem que as injustiças e o pacote de maldade que a cada dia o atual desgoverno fabrica fazem parte de uma obra da iniquidade. Mas, no meio de tudo isso, somos chamados também a nos rever a nós mesmos e a sermos purificados de problemas que exigem de nós conversão permanente. Temos de aceitar as podas divinas, o que exige que as reconheçamos e as acolhamos como tais para poderem ser vividas e de forma que não diminuam a clareza na luta e a radicalidade de nos colocar contra a iniquidade dos golpes que o Brasil está vivendo.
Na Bíblia, cada vez que os profetas e Jesus falam em frutos se subtendem "frutos de justiça". Infelizmente, esse evangelho foi lido em uma ótica individualista e moralista na qual os frutos eram as virtudes morais e o comportamento reto. No evangelho, é fazer o que Jesus fez: dar a vida pelos outros e se consagrar a um mundo de justiça, paz e comunhão com todo o universo. Aleluia.