Domingo dentro da oitava do Natal
(Sagrada Família) – Mt 2, 13-15.19-23
As sagradas famílias e os anjos da nossa vida
Na contemplação e vivência do Natal, a Igreja Católica Romana dedica o domingo dentro dos oito dias da festa à memória da Sagrada Família. Neste domingo, o evangelho (Mateus 2, 13- 15 e 19- 23) conta que o Anjo do Senhor voltou a aparecer a José em sonho e mandou que fugisse com Maria e o menino para o Egito, afim de escapar da ira do rei Herodes. Depois que Herodes morreu, o anjo mandou que voltassem a Nazaré, onde José se estabelece com a família.
José Saramago, em seu livro “Evangelho segundo Jesus Cristo” acusa José de não ter avisado aos vizinhos para que esses também fugissem e protegessem assim os seus filhos. José teria fugido para proteger seu filho, mas, por não ter avisado aos outros pais, deixou todas as outras crianças morrerem. De fato, também o nosso querido Dom Helder Camara, em uma carta circular, comenta na mesma linha a fuga do menino Jesus para o Egito, perguntando ou duvidando se José teria compreendido que os outros meninos de Belém também seriam assassinados:
Quando, com José e o Menino
fugiste para o Egito,
sabias que dezenas de inocentes
seriam trucidados
enquanto teu Filho escapava?
Que mistério, Senhora,
ver o Pai, a Quem era igualmente fácil
salvar um e salvar mil,
preparar a fuga de Cristo
e deixar esmagados
tantos corações de mães!?... Recife, 31.7/1.8.1970[1]
De fato, cultivar essa visão crítica é importante, porque nos pergunta sobre a imagem de Deus que cultivamos. Denuncia a religião egoísta de pessoas que colocam no vidro do carro: “Este foi Jesus quem me deu”, como se Deus ou Jesus a tivesse preferido e, ao mesmo tempo, abandona uma multidão de pobres que não ganham dele nem um carro de mão. Esse modo individualista de viver a fé chega a levar algumas pessoas que escaparam de acidentes coletivos dizerem: “Deus me salvou”, sabendo que salvou a ele ou ela e deixou morrer dezenas de pessoas. É uma religião que pensa em Deus, como um capitalista trata a sua conta de banco.
O relato do evangelho que conta a fuga de José para o Egito é uma narrativa simbólica e assim deve ser compreendida. Não é fato histórico. É um conto rabínico que comenta a passagem do Gênesis na qual José e os filhos de Jacó vão com suas famílias ao Egito para escapar da fome (Gn 39- 40). O evangelho de Mateus liga José, o pai de Jesus com José, o patriarca, através do qual o povo hebreu foi para o Egito. Jesus refaz a experiência do exílio e do Êxodo, assim como o povo antigo viveu no estrangeiro e voltou para a terra prometida. O Egito era o refúgio das pessoas que fugiam de reis, dominadores e tiranos. Antigamente, no Egito, o faraó tinha ordenado o massacre dos meninos hebreus. Na época de Jesus criança, o rei Herodes mandou matar todas as crianças de menos de dois anos. Mateus explica com um verso do profeta Jeremias que fala da dor do exílio (político). Atualmente, o primeito ministro do Estado de Israel ordenou a matança (genocídio) de milhares de crianças, mães, jovens, adultos e idosos em Gaza na Palestina.
Um comentário bíblico africano afirma: “O fato de, quando criança, Jesus ter sido refugiado político, em solo africano (o Egito), deveria ensinar-nos muitas lições. (...) Ao participar da sorte e da luta de tanta gente sem pátria, Jesus honrou todos os que sofrem, por não ter onde morar, em razão da guerra, da fome, da perseguição e de outros desastres. Existem milhões de refugiados no continente africano e em outras partes do mundo. A maioria leva uma vida miserável. (...) Os governos não se sensibilizam com o drama da vida dessas pessoas. O resultado é a multiplicação de pessoas sem pátria, condenadas a viver como prisioneiras virtuais, sem direitos de cidadãs, em um pedaço de terra que não é o seu. O triste é que muitos cristãos não se preocupam com o assunto, ou até creem na mentira de que toda pessoa refugiada cria problemas, mas a Bíblia está cheia de homens e mulheres que viveram como refugiados: Abraão, Moisés, José, bem como grande parte da nação de Israel no Egito e depois na Babilônia. (...) Onde está o povo de Deus para mostrar sua compaixão?” (JOE KAPOLYO, Mateus, in Comentário Bíblico Africano, São Paulo, Mundo Bíblico, 2010, p. 1140).
O rabino Nilton Bonder explica: “A questão do exílio é central na mística do judaísmo. Desde o exílio no Egito, passando depois pela Babilônia, pelo exílio romano e por tantos outros, as comunidades judaicas acabaram ligando o fim dos exílios à era messiânica, ao tempo da utopia onde a gente poderá viver em sua própria casa, ou seja, voltar à sua verdadeira natureza” (A cabala da comida, do dinheiro e da inveja, p. 40).
Esse evangelho aplica a Jesus a profecia de Oséias onde Deus relembra a experiência do Êxodo e se revela como uma mãe que ensina o filhinho a andar e a não cair, quando engatinha (Cf. Os 11). Conforme esse evangelho, Deus não é só pai. É também mãe que cuida dos seus filhos e filhas em situação de vulnerabilidade. O evangelho chama de “Anjo do Senhor” a manifestação desse Deus que João chama de “Amor Divino”. Apareceu a Moisés na sarça ardente e mandou-o conduzir os escravizados hebreus à libertação. Agora, avisa a José para salvar o menino que, desde a sua mais tenra infância, tem sua vida ameaçada. Como tantas famílias de refugiados do mundo atual. Como crianças e adolescentes negros nas periferias de nossas cidades. É Deus presente nos refugiados e retirantes, desde criança.
Os “Anjos do Senhor” continuam falando hoje. Muitos são os que dentro e fora de nossas igrejas nos alertam sobre a crueldade dos Herodes contemporâneos. Eles e elas nos avisam para tomar conta dos meninos e de suas mães que hoje, também, ameaçados por um poder que sempre fica sobressaltado, quando sabe que algo de novo teima em recomeçar no meio do povo, ao longo da história.
A família de Nazaré é sagrada para nos fazer tomar consciência da sacralidade de toda família pobre, refugiada, retirante e sem lugar nesse mundo de relações sociais de desamor. Hoje ainda, a palavra de Deus nos repete: Do Egito chamei o meu filho. Isso significa “Das escravidões e riscos de vida chamo todos os meus filhos e filhas. E encarrego vocês de serem os anjos dessas ações libertadoras”.
Enfim, acolhamos os/as refugiados/as de hoje ao celebrarmos o divino no humano nos visitando neste tempo de Natal.
[1] - DOM HELDER CAMARA, 91ª Circular, (1. 8. 1970), in Circulares Ação Justiça e Paz, CEPA, Recife, 2022, p. 44.
