As sagradas famílias e os anjos da vida
Na contemplação do Natal, a Igreja dedica o domingo dentro dos oito dias da festa à memória da Sagrada Família. Nesse domingo, o evangelho (Mateus 2, 13- 15 e 19- 23) conta que o Anjo do Senhor voltou a aparecer a José em sonho e lhe ordenar que levasse Maria e o menino ao Egito para escapar da ira do rei Herodes. Depois que Herodes morreu, o anjo lhe mandou voltar a Nazaré onde ele se estabelece com a família.
José Saramago, em seu livro “Evangelho segundo Jesus Cristo” acusa José de não ter avisado aos vizinhos para que estes também fugissem e protegessem assim os seus filhos. José teria fugido para proteger seu filho, mas, por não ter avisado aos outros pais, deixou todas as outras crianças morrerem. De fato, esta visão crítica é boa porque nos pergunta sobre a imagem de Deus que cultivamos. Lembra as pessoas que colocam no vidro do carro: “Este foi Jesus quem me deu”, ou quando há acidentes coletivos, a pessoa dispara: “Deus me salvou”, sabendo que salvou a ele ou ela e deixou morrer dezenas de pessoas. É uma religião que trata Deus como o capitalista trata a sua conta de banco.
O relato do evangelho que conta a fuga de José para o Egito é uma narrativa simbólica que comenta um episódio do primeiro Testamento. É um midrash que comenta a passagem do Gênesis na qual os filhos de Jacó, junto com o patriarca José vão com suas famílias ao Egito para escapar da fome (Gn 39- 40). O evangelho de Mateus liga José, o pai de Jesus com José, o patriarca, através do qual o povo hebreu foi para o Egito. Jesus refaz a experiência do exílio e do Êxodo, assim como o povo antigo viveu no estrangeiro e voltou para a terra prometida. O Egito era o refúgio das pessoas que fugiam de reis dominadores.
No Egito, o faraó tinha ordenado o massacre dos meninos hebreus. Agora, Herodes manda matar todas as crianças de menos de dois anos. Mateus explica com um verso do profeta Jeremias que fala da dor do exílio (político). Um comentário bíblico africano afirma: “O fato de Jesus ter sido quando criança um refugiado político em solo africano (o Egito), deveria ensinar-nos muitas lições. (...) Ao participar da sorte e da luta de tanta gente sem pátria, Jesus honrou todos os que sofrem por não ter onde morar, em razão da guerra, da fome, da perseguição e de outros desastres. Existem milhões de refugiados no continente africano e em outras partes do mundo. A maioria leva uma vida miserável. (...) Os governos não se sensibilizam para o drama da vida dessas pessoas. O resultado é a multiplicação de pessoas sem pátria, condenadas a viver como prisioneiras virtuais, sem direitos de cidadãs, num pedaço de terra que não é o seu. O triste é que muitos cristãos não se preocupam com o assunto ou até creem na mentira de que toda pessoa refugiada cria problemas , mas a Bíblia está cheia de homens e mulheres que viveram como refugiados: Abraão, Moisés, José, bem como grande parte da nação de Israel no Egito e depois na Babilônia. (...) Onde está o povo de Deus para mostrar sua compaixão?” (JOE KAPOLYO, Mateus, in Comentário Bíblico Africano, São Paulo, Mundo Bíblico, 2010, p. 1140).
O rabino Nilton Bonder explica: “A questão do exílio é central na mística do judaísmo. Desde o exílio no Egito, passando depois pela Babilônia, pelo exílio romano e por tantos outros, as comunidades judaicas acabaram ligando o fim dos exílios à era messiânica, ao tempo da utopia onde a gente poderá viver em sua própria casa, ou seja, voltar à sua verdadeira natureza” (A cabala da comida, do dinheiro e da inveja, p. 40).
Esse evangelho aplica a Jesus a profecia de Oséias onde Deus relembra a experiência do Êxodo e se revela como uma mãe que ensina o filhinho a andar e a não cair quando engatinha (Cf. Os 11). Conforme esse evangelho, Deus não é só pai. É também mãe que cuida dos seus filhos pequenos.
Em sua mensagem de Natal aos irmãos e irmãs do grupo Emaús, o querido amigo Pedro Ribeiro de Oliveira explica: “O mundo vai mal, muito mal. Chamo esse mal de triunfo do mercado dominado pelo capital. Hoje o mercado não é mais composto por seres humanos, como eram as antigas feiras medievais, ou as feiras que ainda sobrevivem no interior, onde o povo da roça troca sua produção por mercadorias industriais, depois que foi à igreja, tendo se hospedado com parentes e aproveitando os intervalos da negociação pra trocar informações e consolidar amizades... Hoje o mercado é dominado por fantasmas chamados "pessoas jurídicas" que não têm outro objetivo na existência senão fazer multiplicar o capital nelas investido. Os seres humanos empregados desses fantasmas são apenas cumpridores de ordens - sempre anônimas - que beneficiem o capital. (Como os diretores da Vale, que este ano vai pagar mais dividendos do que reparação às vítimas de seus crimes ambientais). Diante desses fantasmas que fazem funcionar a única instituição que não está em crise, escutamos as advertências dos profetas e místicos, contra a destruição que se aproxima, inexorável, se não escutarmos a voz da divindade amorosa que nos quer bem”.
O evangelho chama de “Anjo do Senhor” a manifestação desse Deus que Pedro chama de “divindade amorosa”. Ele apareceu a Moisés na sarça ardente e mandou-o conduzir os escravos hebreus à libertação. Agora, avisa a José para salvar o menino que desde a sua mais tenra infância tem sua vida ameaçada. Como tantas famílias de refugiados do mundo atual. Como crianças e adolescentes negros nas periferias de nossas cidades.
Os “Anjos do Senhor” continuam falando hoje. Muitos são os que dentro e fora de nossas igrejas nos alertam sobre a crueldade dos Herodes contemporâneos. Muitos nos convidam a tomar conta dos meninos e de suas mães que hoje, também, estão sendo ameaçados por um poder que sempre fica sobressaltado quando sabe que algo de novo sempre teima em recomeçar no meio do povo, ao longo da história.
A família de Nazaré é sagrada para nos fazer tomar consciência da sacralidade de toda família pobre, refugiada e sem lugar nesse mundo do desamor. Hoje ainda, a palavra de Deus nos repete: Do Egito chamei o meu filho. Isso significa “Das escravidões e riscos de vida chamo todos os meus filhos e filhas. E encarrego vocês de serem os anjos dessas ações libertadoras”.