1º Domingo da Quaresma: Mc 1, 12- 15.
As religiosas e as santas tentações do diabo
Cada ano, no primeiro domingo da Quaresma ouvimos o evangelho que mostra Jesus sendo empurrado pelo Espírito de Deus ao deserto para ser provado. O evangelho de Marcos 1, 12- 15 relata esse episódio de forma sóbria e breve: “O Espírito o empurrou para o deserto. Lá, durante quarenta dias, foi posto à prova por Satanás. Ele convivia com as feras e os anjos o serviam” (Mc 1, 12- 13).
O antigo povo dos hebreus passou pelo deserto. Para conquistar a terra prometida, teve de atravessar o rio Jordão (Js 3). Jesus também mergulha no Jordão e dali sai para a sua missão de testemunhar o projeto divino no mundo. Mas, antes de fazer isso, é empurrado pelo Espírito para escolher o modo como vai realizar a sua missão e ver mais claro o que Deus pede dele.
Hoje, a palavra tentação tem sentido negativo. Na Bíblia, tentação significa escolher entre duas ou diversas alternativas qual seguir para realizar um projeto de vida. Às vezes, temos de escolher dentro do próprio caminho de Deus, sobre como agir e que opção tomar. Jesus teve de escolher. Cada escolha tinha vantagens e limites e, fosse qual fosse, poderia ser vista como sendo agradável a Deus. Mas, há uma que é a vontade de Deus aqui e agora. Sou cristão e quero viver o caminho do seguimento de Jesus, mas como? De que maneira? Através de que estilo?
O deserto de Jesus não foi apenas lugar geográfico. Jesus foi ao deserto quando foi ao mais profundo do seu próprio ser, no qual precisava aprimorar suas escolhas e unificar a sua vida com o projeto divino. No deserto, ao orar, Jesus descobriu que, no batismo do Jordão, recebeu o batismo para se colocar como servo humilde e sofredor de Deus e não como Messias poderoso, filho do rei Davi e cheio do poder divino. No batismo ele ouviu a mesma palavra que Deus deu ao servo sofredor descrito no 2º Isaías.
Não deve ter sido fácil para Jesus constatar que tinha se enganado em seu caminho espiritual. Precisava renunciar a ser referência religiosa. Não devia fazer milagre. Nunca devia usar o poder. Tinha de abandonar a segurança da lei e de qualquer instituição. Só o Pai. Só a fé. Só a graça do amor. A partir daquele momento no deserto, começou o seu caminho ao Calvário. Foi sua opção louca.
No livro do Dostoievski, o grande inquisidor em Sevilha lhe disse: “Era o outro (o diabo) que tinha razão e não você”. Até hoje, a maioria dos os religiosos pensam isso. A Igreja construiu o Vaticano e o papa se tornou chefe de Estado acreditando que isso facilita a missão de pregar o evangelho. Quantos padres pedem dinheiro e se colocam como homens de poder para melhor cumprirem sua missão. É um modo de compreender o projeto divino. Jesus teve de descobrir que isso não é o projeto divino. No deserto, ele percebeu que aquele caminho era inspirado não por Deus mas por Satanás.
Como o povo antigo no deserto. Durante 40 dias, Ele é tentado por Satanás, palavra da antiga cultura persa que significa Acusador. O termo hebraico Satã (traduzido no grego por diabolos: diabo) significa acusador. O rabino Nilton Bonder explica: “A palavra demônio (em hebraico Satan) tem sua raiz no verbo bloquear ou impedir. Satan representa um bloqueio nessa conexão com um fluxo sadio, enquanto a Cabala (em hebraico recebimento) se concretiza na liberação desse fluxo”. “Na tradição judaica, Satan é denominado ‘o outro lado’ (Sitra Achra). Não é uma entidade, mas sim forças que nos distraem, nos deslocam do nosso centro interior e significam literalmente obstáculos ao nosso retorno ao caminho da saúde e da integração interior”[1].
O próprio Jesus chamou Pedro de Satanás, no sentido de “alguém que é obstáculo” (Mt 16, 23). Para a mentalidade bíblica, Satanás é uma das criaturas que servem a Deus no céu (ver Jó 1, 6- 2, 7). Foi em contato com outras culturas e outras religiões que a Bíblia fala de Satanás como espírito forte, contrário a Deus, a seu projeto e a seu povo [2].
Conforme Marcos, Jesus não teve um só tentador, nem uma só tentação. Para Jesus as tentações foram religiosas e santas. Vocês lembram que, no evangelho, os seus adversários o acusam de não jejuar, de não respeitar o sábado, de comer com pecadores e com gente de má vida. E o que os diversos tentadores mais pediam dele era que fosse um homem do céu. E ele rejeitou sempre a tentação da religião do templo e da sinagoga, até hoje tão fortes e vivas na Igreja Católica e em outras Igrejas cristãs. Marcos mostra que as tentações de Jesus e as tentações da Igreja cristã 70 anos depois de Cristo, na época em que o evangelho foi escrito, são as mesmas tentações que até hoje as Igrejas cristãs enfrentam.
É preciso uma Campanha da Fraternidade para o mundo, mas também para nós mesmos da Igreja para compreender que o projeto divino é a irmandade de todos os seres humanos e até de todos os seres vivos e nesse ponto, o caminho para isso é a amizade social.
O evangelho diz que, no deserto, Jesus conviveu com animais selvagens e contou com o serviço dos anjos, isso é, mensageiros de Deus. Isso indica também para nós o caminho da integração com as dimensões que existem em nós: a dimensão animal e até selvagem e a dimensão angélica. Para nós, hoje, ressoa o apelo “O tempo está completo. O reino de Deus está próximo. Mudem de critérios a partir dos quais vocês organizam a vida e se agarrem a esta Boa Notícia”.
[1] - NILTON BONDER, A Cabala da Comida, do Dinheiro e da Inveja, Rio de Janeiro, Imago, 1999, p. 36 e 41.
[2] - A maioria destes dados está nos verbetes Satã e Demônio no Dicionário Enciclopédico da Bíblia, obra coletiva organizada por DR. VAN DEN BORN, trad brasileira Ed Vozes, 1987, pp. 365- 366; 1396- 1397.