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As tentações a que submetemos Jesus

                                                                As tentações aos quais submetemos Jesus 

Desde tempos antigos, as Igrejas costumam iniciar a Quaresma com a leitura de uma das narrativas evangélicas que contam as tentações de Jesus no deserto. Certamente, é um modo de chamar a nós e a nossas comunidades para também irmos ao deserto com Jesus durante quarenta dias. Atualmente, é comum falarmos em Quarentena. No plano da fé, a quarentena pascal não é para se isolar e manter a imunidade contra algum vírus. A proposta da Quaresma é "preparar o coração para a festa" e enfrentar os desafios e questões que na vida sempre somos chamados/as a decidir. 

Tentação não significa uma prova a vencer, nem teste no qual se escolhe entre o bem e o mal. Tentação significa a escolha de um projeto de vida que temos de discernir entre duas ou diversas alternativas. Jesus sempre teve de escolher. Cada escolha tinha suas vantagens e seus limites. Cada escolha poderia até ser vista como sendo agradável a Deus. É a partir desse olhar que convido vocês a lerem esse evangelho do 1º domingo da Quaresma do ano A (Mateus 4, 1- 11). 

De acordo com a Bíblia, o antigo povo de Deus foi tentado no deserto. Assim também, durante toda a sua vida, Jesus teve de enfrentar tentações. Mateus conta as tentações de Jesus no deserto como uma espécie de “haggadá” (um conto) sobre as tentações de Israel no deserto. O povo dos hebreus enfrentou as tentações, ou seja, teve de definir o seu projeto de sociedade no deserto. A Bíblia conta que ali passou 40 anos. Jesus passa ali quarenta dias. Assim como o povo teve fome, também Jesus enfrenta essa provação. Teve de enfrentar e vencer as mesmas tentações de Israel no deserto. Eram as tentações também  da Igreja cristã 80 anos depois de Cristo, na época em que a comunidade de Mateus escreveu esse evangelho. 

Para Jesus, as tentações foram no sentido de como ele iria cumprir a sua missão. Conforme o evangelho, ao ser batizado, Jesus descobriu ser filho de Deus no sentido de alguém que Deus delega ao mundo para realizar o seu projeto para a humanidade. Ao sair do batismo, o Espírito Santo o empurra para o deserto, para a solidão consigo mesmo, afim de decidir como iria cumprir essa missão . No relato poético desse evangelho, Satanás sempre começa a tentação dizendo a Jesus: Se tu és o filho de Deus...

O diabo propõe a Jesus um modo de ser filho de Deus a partir do poder, a partir do milagre e a partir do religioso. Não eram tentações pessoais no sentido do orgulho, da vaidade, ou outra virtude moral. A tentação era o que Jesus faria para garantir a vitória da sua missão. Como ele agiria para garantir que o reino de Deus que ele anunciava não fracassaria. Como garantir que o projeto divino para esse mundo, que vai muito além da religião não fracasse, se Jesus se sente chamado a renunciar por amor ao poder religioso e também à relação com o poder social e político?

Tanto na versão de Mateus, como de Lucas, o divisor se apresenta como aquele que tem o poder sobre o mundo (Tudo isso é meu e tudo isso te darei se tu me adorares, ou seja, te curvares diante de mim). Cada vez que religiosos se curvam e servem aos poderosos do mundo e a seus interesses cederam à tentação do maligno. O evangelho diz claramente que o poder econômico e político no mundo tem um caráter diabólico e Jesus o rejeita.  

Jesus sempre responde ao diabo com a própria Palavra de Deus. Jesus aceita a insegurança no futuro, tanto para si mesmo, como em relação ao que é mais difícil para ele: a sua causa. Ele podia dizer como o saudoso Pedro Casaldáliga: “Minhas causas são mais importantes do que a minha vida”.  Mas, até mesmo a sua causa, sua missão, ele, Jesus tem de entregar nas mãos do Pai e renunciar a ter qualquer segurança de vitória. É a sua fé como entrega total nas mãos do Pai que é sua vitória na tentação. 

Infelizmente, até hoje, a maioria das pessoas que assumem o poder nas instituições eclesiásticas e muita gente nas Igrejas continuam a acreditar que Jesus cedeu às tentações e seguiu o caminho proposto por Satanás: aproveite o poder a seu favor que você poderá salvar o mundo. Sem poder, como vai conseguir fazer alguma coisa? Mostre que faz milagre. O sangue de Jesus tem poder. Conquiste o mundo e aí sim você será Salvador. 

Jesus se sentiu tentado a isso, mas resistiu. Percebeu que a Palavra de Deus e as profecias do Servo Sofredor indicavam outro caminho: a cruz, isso é, a inserção no meio dos pequenos e marginais e a solidariedade aos excluídos. E ele optou por isso. Um dia, ao anunciar aos discípulos essa sua decisão, teve de brigar com Pedro, seu amigo e companheiro. Pedro lhe disse: De modo nenhum, isso vai acontecer com você. Deus não vai permitir. Jesus diz a Pedro:  “Passa para trás, Satanás. Tu não compreendes nada do projeto divino. O teu modo de pensar é do mundo”  (Mt 16, 23). 

De acordo com os próprios evangelhos, podemos afirmar que o diabo que tentou Jesus no deserto foi a própria comunidade cristã para a qual Mateus escreveu o evangelho. Os cristãos dos anos 80 não aceitavam um Jesus que não fosse propriedade deles e para lhes dar força e poder. Durante os seus 21 séculos de história, as Igrejas cristãs vivem o tempo todo essas tentações. Elas falam da “santa cruz”, tornaram a cruz objeto de adoração, colocam a cruz no altar e no pescoço das pessoas, mas tiraram a cruz do seu  caminho de vida como projeto de missão e como caminho que Jesus escolheu e escolhe hoje. Quem não compreende o Cristianismo social e a inserção em uma espiritualidade libertadora não compreende a cruz de Jesus e fica com o Cristianismo que o diabo propôs a Jesus.

Continua ocorrendo hoje o que, no século XIX, Dostoievski contava na Lenda do Grande Inquisidor. O arcebispo de Sevilha dizia a Jesus: O      que você veio fazer aqui? Não precisamos de você. Até hoje, você ainda não se deu conta de que o outro (o diabo) tinha razão. A humanidade não está preparada para a liberdade que você quer.

É importante que a meditação das tentações de Jesus e de como ele as venceu possa ajudar as Igrejas de hoje a retomarem o caminho do deserto e refazerem as opções fundamentais da fé. 

Neste 1º Domingo da Quaresma, no Brasil, ligamos a Quaresma com a Campanha da Fraternidade que, a cada ano, propõe um desafio social a vencer como caminho pascal. Seja de cinco em cinco anos, a Campanha da Fraternidade Ecumênica, coordenada pelo CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), seja a de cada ano, proposta pela CNBB, nos ajudam a concretizar a caminhada pascal em um mutirão de solidariedade que torna pascal a nossa vida. A CF 20023 nos convoca para a partilha e o cuidado no combate à fome e às causas estruturais da fome na sociedade. No evangelho das tentações de Jesus, a primeira tentação foi justamente sobre a fome e a comida. O diabo se serviu da fome para insinuar a Jesus um messianismo milagreiro e que atacasse a fome sem cuidar das raízes mais profundas que geram a fome. A resposta de Jesus é a meta dessa Quaresma e dessa CF: nem só de pão vive o ser humano, mas de toda palavra que sai da boca de Deus. A palavra de Deus é a luz para nos guiar a uma comunidade de partilha e justiça. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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