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As transfigurações de Jesus e as nossas na vida e na luta

Jesus e as transfigurações  nossas e da Vida

 

 Anualmente, no 2º domingo da Quaresma, a Igreja nos faz ouvir uma das versões do episódio conhecido como a transfiguração de Jesus. Neste ano A, escutamos o relato de Mateus (Mt 17, 1- 9). Esse evangelho situa a história como tendo ocorrida “seis dias depois” da cena na qual, viajando pelo norte do país, Jesus anuncia aos discípulos que está indo a Jerusalém para enfrentar as autoridades religiosas e políticas e isso o levará à morte violenta na cruz. 

A transfiguração de Jesus é o relato de um êxtase espiritual, um transe místico. Jesus recebeu o Espírito, fenômeno semelhante ao que, com outros nomes e de outras formas, ocorrem nos cultos de matriz africana e em muitas tradições espirituais da humanidade. No entanto, o que é próprio da transfiguração de Jesus é que esse momento mais místico da vida dele ocorre justamente no momento em que ele decide assumir o conflito social e ir a Jerusalém aonde vai enfrentar como profeta as autoridades políticas e religiosas, com plena consciência de que vai ser condenado à morte de cruz. 

O evangelho conta que os discípulos reconhecem Jesus como filho de Deus, mas, por isso mesmo, não aceitam que ele possa sofrer e ser rejeitado pelo mundo. Ligam Deus com poder e glória e não com fragilidade e sofrimento. Pedem a Jesus que não siga esse caminho. Querem um Messias forte, vitorioso, com poder para mudar as coisas e que nunca poderia ser mais um pobre entre os pobres do mundo. No entanto, Jesus rejeitou essa proposta como tentação do adversário. 

No domingo passado, vimos que Jesus considera a religião baseada no milagre e no poder como tentação do diabo. Hoje, muitos grupos e Igrejas cristãs continuam essa forma de religião. Lidam com o poder, com o dinheiro e usam o nome de Jesus para seus interesses grupais. 

A cruz de Jesus e a marginalidade dos movimentos sociais fazem parte da história. São consequências do caminho que o mundo toma. A opção de Jesus sempre foi inserir-se nessa realidade. É ser identificado com os jovens negros assassinados. É reviver a sua Páscoa com os trabalhadores e com os índios que têm seus direitos negados e violados. 

A cena da transfiguração no evangelho é para nos dar força de viver a missão e a inserção nessa realidade. Jesus revela a seus três amigos íntimos a presença divina não na sua força mas na sua fraqueza. No Monte que lembra outro monte, o Sinai, Jesus refaz na intimidade da cena com os três amigos, o clima de aliança que Deus Pai quer reviver com a humanidade. A cena é luminosa e alegre, como para dizer que temos direito a sentir alegria com a presença de quem amamos. É como um momento de êxtase e de gozo profundo do corpo e do espírito. É neste clima que Jesus quer confirmar aos discípulos que a tragédia da história humana, a cruz que ele vai sofrer pode ser vista a partir de outro ângulo e esse olhar nos é dado pelo próprio Deus. Assim como Pedro confessou sua fé em Jesus, agora é o Pai que revela: “Este é o meu Filho amado. Escutem-no”. 

Transfiguração (em grego “metamorfose”) é a experiência íntima de três discípulos que Jesus escolhe para compartilhar da sua intimidade com o Pai. Ele não diz porque escolhe aqueles três que estarão junto com ele nos momentos mais íntimos, inclusive no horto das Oliveiras na noite em que ele for preso. Só diante desses três, ele revela sua intimidade, como uma nudez. Para eles, Jesus frágil e caminhando para a cruz mostra que o Pai o revestiu de sua presença e seu amor. A transfiguração é uma visão que os discípulos têm. Eles é que são chamados a transformar (metamorfosear) a sua visão sobre Jesus e sobre o modo como Jesus assume a missão. Na nossa vida, podemos ter vários amigos e amigas. Poucos/as são aqueles/as aquelas que têm acesso à nossa alma transfigurada, à intimidade mais profunda do nosso ser e daquilo que é nosso projeto de vida e o modo de construí-lo.

A transfiguração ocorre em nossas vidas, seja no plano das nossas relações de amizade, seja no nível social e político das nossas lutas.  No plano de nossas relações: Quantas pessoas de nossa própria família ou amigos queridos de infância nos querem bem e queremos bem a eles, mas, ao mesmo tempo, são como estranhos quando se trata de como compreendemos a vida e como percebemos nossa missão? 

São raras as pessoas que nos convidam para com elas/eles viverem essa intimidade da transfiguração nas vidas deles. Basta a gente pensar que Jesus tinha 72 discípulos. Destes, escolheu 12 apóstolos e dos doze, só três ele escolheu para essa experiência de intimidade profunda de sua alma. De certa forma, transfiguração é uma experiência espiritual vivida nas religiões de matriz africana e em algumas tradições indígenas. Pode-se se chamar de “incorporação” ou “receber santo”. O Xamã Davi Kopenawa comenta como é forte essa experiência espiritual:

“Nossa memória é longa e forte. O mesmo ocorre com as palavras dos espíritos xapiri, que também são muito antigas. Mas voltam a ser novas, sempre que eles vêm de novo dançar para um jovem xamã, e assim tem sido há muito tempo, sem fim (...). As palavras de Omama e as dos xapiri são as que prefiro. Essas são minhas de verdade. Nunca irei rejeitá-las." (A queda do céu, p. 75)

"Meu sogro ... é um Xamã antigo e seus espíritos já conhecem todas essas coisas. (...) Foi ele quem me deu sabedoria, me propiciando contemplar o que os xapiri veem. Costumava me chamar e dizer: ´Venha cá! Vou alargar seu pensamento. Você não deve envelhecer sem se tornar um verdadeiro homem espírito. Senão, jamais poderá ver a imagem da floresta com os olhos dos xapiri!` Então, eu me agachava e bebia yakoana com ele durante um longo tempo (...). Então, de repente, eu era capaz de ver do mesmo modo que os xapiri e, assim, tudo se esclarecia. (A queda do céu, p. 328)[1]

Há cristãos que não aceitam ler o evangelho a partir das outras experiências espirituais. Deveriam dizer claramente que são contrários ao fato de que “a Palavra de Deus (o Verbo) se fez carne e armou sua tenda no meio de nós” (Jo 1, 14). Jesus assumiu tudo o que é humano e quer que nós o assumamos também. 

No evangelho, o que Jesus mostra aos três discípulos deslumbrados é que ele refaz ali a relação com Moisés e Elias, não conversando com fantasmas do passado e sim trazendo eles para hoje. Isso significa trazer para a intimidade daquele momento de amizade a experiência libertadora do Êxodo, a dimensão política da fé, a decisão de ser como o servo sofredor de Deus que no tempo do profeta Isaías, ouviu de Deus:  “Este é o meu servo (Jesus ouve: meu filho) amado. Escutem-no!”. 

Ao aplicar a Jesus a mesma palavra dita a Israel, servo na Babilônia, Deus Pai confirma a vocação de Jesus de ser filho amado de Deus, justamente pela doação de sua vida e pela sua solidariedade aos deserdados do mundo, que, em todas as épocas do mundo, constituem um povo de crucificados. Na Transfiguração de Jesus, o Pai revela sua presença (sua glória) na pessoa de Jesus que marcha para Jerusalém, para a cruz. Não porque o Pai queira que seu Filho morra ou queira legitimar ou santificar a cruz – seria um Deus masoquista ou sádico, cruel – mas porque, sendo que os impérios do mundo provocam cruz e morte, Deus acompanha e confirma o testemunho do seu Filho e revela que está com ele até a cruz. Como está com você e comigo quando escolhemos esse caminho de doação e de espiritualidade sócio-política libertadora. Jesus nos chama para irmos além das transfigurações excepcionais no alto da montanha e vivermos uma fé profética despojada e sem visões no cotidiano da vida. 

 



[1] - Cf. KOPENAWA, Davi e ALBERT: A queda do céu.  Companhia das Letras, São Paulo,  2015.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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